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Poeta preenche frascos de lança-perfume com poesias para conscientizar jovens sobre uso de droga

Antonio Guerra passou parte da adolescência viciado em álcool e cocaína, até conhecer um espaço cultural que o fez repensar a vida e descobrir o amor pela escrita; iniciativa foi tema do documentário 'Lança'

Por Caio Nascimento
Atualização:
Poeta já chegou a encontrar mais de 50 frascos de lança-perfume em praça da Cidade Tiradentes. Foto: Reprodução de cena de 'Lança' (2018) / Divulgação

"Durante muito tempo me deixei levar pelos sentimentos e me degradava, achando que era a solução". Assim foi a adolescência de Antonio Guerra, de 23 anos. Assolado pela depressão e com problemas familiares e de autoestima, o morador da Cidade Tiradentes - periferia do extremo leste de São Paulo - saiu de casa aos 17 anos, em 2013, e se entregou às drogas, em busca de um alívio para os problemas emocionais que enfrentava.

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Guerra já se entorpecia há algum tempo. Sem um lar, ele morou na rua, passou fome e aumentou o vício numa praça da comunidade, apelidada de "Quadrado", onde moradores dividiam espaço com viciados e traficantes.

"Aos 14 anos, a moda na quebrada era o lança-perfume. Maconha era para os caras mais velhos, os 'malocas' veteranos. Lá tinha até criança", afirma. "A maioria [da juventude da Cidade Tiradentes] começa no lança, e depois vai para a cocaína e afins. Lembro de uma época em que traficantes enchiam frascos de lança-perfume por cinco reais. Aquilo matou vários", completa.

'Já vi usuário de crack chegar lá e fazer as pessoas chorarem'

As drogas pareciam resumir a vida de Guerra, até ele conhecer o luau cultural Raiz Quadrado, realizado na praça nas noites de domingo, há seis anos. O espaço despertou nele a vontade de escrever e recitar poesias, o que o fez repensar a vida e começar a se afastar das drogas - por mais que ainda fume cigarro de nicotina e beba álcool.

O evento atrai não só os dependentes químicos e usuários do local, mas qualquer morador interessado em tocar algum instrumento, cantar, ler textos ou só assistir. "Nós acolhemos todos que vão lá, independentemente dos vícios. Ninguém será julgado. A pessoa vai falar e ser escutada, porque vivemos numa sociedade plástica, que não conversa. Ninguém quer saber quem o outro realmente é. Lá não é e não vai ser assim", diz.

A vontade de erguer um debate sobre drogas e amparar as pessoas fez Guerra inovar o luau. Num fim de semana em que limpava a praça para as apresentações, ele teve a ideia de pegar os inúmeros frascos de lança-perfume jogados no chão, limpá-los e colocar pequenas poesias dentro deles. O poeta renova os textos todo mês, os distribui para o público e propõe que cada um da plateia leia para os demais.

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Poesias são escritas em tiras de papel. Foto: Reprodução de 'Lança' (2019) / Divulgação

"Eu não vou dizer que mudou a vida de alguém, mas gerou reflexão. As pessoas passaram a falar [no luau] o que conhecem sobre as drogas, o que já aconteceu na vida delas, a desabafar mesmo", conta. "Já vi usuário de crack e cocaína chegar lá e fazer as pessoas chorarem, com palavras poéticas, artísticas", diz.

De acordo com a psicóloga especialista na questão das drogas da ONG É De Lei, Maria Angélica Comis, isso é importante na medida em que Antonio Guerra não assume uma visão moralista sobre o tema. Além disso, ela acredita que só deixando o terror de lado para conseguir ter uma conversa aberta e sincera com a juventude. 

"Quando você tira o peso moral do assunto, você consegue dialogar mais com a população, porque as pessoas têm medo de falar que são usuárias de drogas ilícitas", explica. "Uma campanha falando que droga mata, por exemplo, cria uma barreira com os adolescentes. Ele verá que o amigo usuário dele não morreu, e o papo vai cair em descrédito", completa.

Iniciativa vira documentário e expõe desconhecimento sobre o tema

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A ação de Antonio Guerra foi registrada em um minidocumentário de 22 minutos chamado Lança, em que a artista plástica e diretora da obra Aline Di Fátima colheu depoimentos para mostrar como o lança-perfume vem matando os jovens. Segundo ela, o filme foi exibido em diversos espaços para um público jovem, que mostrou desconhecimento sobre o assunto.

"Muita gente nunca tinha ouvido falar, porque essas coisas não chegam ainda [na periferia], é um assunto desconhecido", diz ela, que morou por mais de dez anos na Cidade Tiradentes. A afirmação se reflete em números: segundo dados não oficiais apresentados no filme, 111 jovens morreram em função do consumo de lança-perfume na capital paulista em 2015, sendo a grande maioria menor de 18 anos.

Além disso, a associação Rolezinho, A Voz do Brasil estimou que a cada cem jovens que deram entrada em hospitais da cidade de São Paulo nos fins de semana de 2016, cerca de quatro morreram por uso de lança-perfume e 16 apresentaram complicações causadas pela droga.

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Em meio às tragédias, Aline revela que ficou interessada em dirigir o filme depois que dois ex-alunos seus, de quando dava aulas de Português na rede pública, morreram ao usar a substância.

Assista:

O silêncio por trás do lança-perfume

As tragédias por lança-perfume são silenciosas no Brasil. Ricardo Sucesso, que coordena a campanha Lança Mata, afirma que não existem dados oficiais sobre as mortes pelo consumo da droga, porque os motivos do óbito são registrado pelos efeitos dela, como parada cardiorrespiratória.

Além disso, o ativista alerta que o sofrimento retratado no filme vai continuar sendo uma realidade enquanto houver a falta de propagandas da Prefeitura de São Paulo que aproximem a juventude dos Centros de Atenção Psicosocial (Caps). "Falta diálogo com as comunidades, e o distanciamento geralmente se dá por falta de informação", explica.

A Cidade Tiradentes conta com uma unidade da Caps, mas tanto Aline quanto Guerra afirmam que o trabalho da instituição não se aproxima dos dependentes químicos do distrito com eficácia. "Existe um bloqueio das pessoas ao se abrigarem nesses lugares ou procurarem ajuda. A divulgação não é tão forte", critica o poeta, que em nenhum momento recebeu amparo do órgão.

Essa é a vista da praça do luau Raiz Quadrado, na Cidade Tiradentes. Foto: Reprodução de cena de 'Lança' (2018) / Divulgação

A presidente do Conselho Municipal de Políticas de Drogas e Álcool de São Paulo (Comuda), Nathália Oliveira, destaca que profissionais de saúde estão há pelo menos cinco anos alertando os governos sobre o consumo de lança-perfume, mas nada é feito, o que, em sua visão, reforça a importância do filme Lança. "O documentário apresenta uma linguagem que comunica [o problema de dependência química] de jovem para jovem, aumentando o alcance e o impacto das mensagens de conscientização", afirma.

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O E+ entrou em contato para pedir o posicionamento do Caps da Cidade Tiradentes sobre o assunto, mas não obteve retorno.

Os males do lança-perfume

A droga é produzida por solventes químicos, como clorofórmio, ingredientes de tintas, verniz e água de bateria. Essas substâncias são misturadas com aromas e colocadas sob alta pressão dentro de frascos, podendo acelerar os batimentos cardíacos e gerar alucinações acompanhadas de formigamento e sensação de felicidade.

Os efeitos duram até 30 minutos, mas as consequências podem ser eternas. O entorpecente causa danos aos rins, fígado, sistema nervoso central - importante para o equilíbrio do corpo -, cardiovascular, aumenta as chances câncer e pode matar em uma única inspiração.

Diante desses problemas, Guerra diz continuar firme na sua iniciativa artística para reduzir os danos da droga. Ele destaca que não é a salvação de ninguém, mas que, no meio das dificuldades, segue acreditando no potencial que existe nas vielas e ruas da Cidade Tiradentes. "É aqui que nasce a verdadeira arte. Sair das drogas é uma grande metamorfose por aqui. Cada dia você desconstrói um passo ao lado de pessoas que o mundo não ouve", conclui o poeta.

Antonio Guerra (à direita) preparando as poesias para colocar nos frascos usados de lança-perfume. Poeta diz se sentir feliz em ajudar pessoas a se conscientizarem sobre a redução de danos da droga. Foto: Reprodução de 'Lança' (2018) / Divulgação

*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

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