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‘O teatro salvou a minha vida’, diz ex-detento que atuou em ‘Sintonia’

Ator fez aulas de artes cênicas na cadeia e passou no teste da série três meses após ganhar liberdade condicional; conheça a história de presos que tentam mudar de vida nos palcos

Por Camila Tuchlinski e Caio Nascimento
Atualização:
Leonardo Campos interpreta o traficanteLindão na série 'Sintonia', da Netflix. Ele fez aulas de teatro enquanto cumpria sua pena no presídio Adriano Marrey. Foto: Caio Nascimento / Estadão

Leonardo Campos, de 34 anos, caminha pelo quintal estreito do conjunto de casas onde mora com a família, no Morro Grande, periferia de São Paulo, enquanto lembra das suas dificuldades na penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos. O homem, que hoje atua como Lindão na série Sintonia, da Netflix, foi condenado por roubo de carro em 2014 e passou quatro anos dentro de uma cela com o dobro de presos que deveria ter. De calças beges e com poucas condições de higiene, o sentimento de remorso por trás das grades se misturava com o julgamento dos parentes pelo crime que cometeu. No entanto, o que Leonardo não esperava era que aquele lugar despertaria sua vocação para as artes. Ele começou a escrever seis livros, letras de música - do gospel ao funk - e aprendeu a tocar violão para expressar as emoções, até que descobriu as oficinas de teatro - oferecidas a um seleto grupo de presos dentro da unidade desde 2010. “As aulas me deram mais sabedoria, maturidade e foco, porque a cadeia é um mundo sem luz que não te dá direção”, diz o ator. “Eu sentia a liberdade no palco, podia ser eu sem me preocupar em ser criticado por colocar o melhor de mim para fora. Na cela você tem que ficar mais reservado, não sorrir para ninguém, porque é um ambiente só de ódio, tristeza, sofrimento e abandono. Teatro é a vida lá dentro e salvou a minha. É um pequeno brilho de luz”, completa. Leonardo havia atuado como figurante nas séries Cidade dos Homens e 9mm: São Paulo, em 2008, antes de cometer o crime. No presídio, ele ajudou a fazer uma adaptação teatral do filme O Auto da Compadecida e se destacou nas aulas, o que lhe rendeu o papel na série da Netflix, em novembro de 2018, três meses depois de ganhar a liberdade condicional. “Fui indicado por funcionários da unidade ao Kondzilla [criador de Sintonia] para fazer o teste. Mas jamais imaginaria que fosse algo tão grande. Nunca tinha feito personagem com falas”, revela.

Ator de 'Sintonia' escreveu 26 músicas gospel no presídio e aprendeu a tocar violão atrás das gradespara melhorar a composição. Foto: Caio Nascimento / Estadão

A surpresa do artista não foi para menos. Numa tarde chuvosa e fria do mês de agosto do ano passado, ele saiu sozinho da penitenciária com o uniforme da unidade, inúmeras folhas com seus textos e a bíblia cristã embaixo do braço. Sem dinheiro e nutrido pelo sonho de subir aos palcos, tudo parecia ser o começo de uma nova fase, até que foi constrangido por funcionários do metrô, que lhe negaram ajuda com a condução ao tentar voltar para casa. “Estamos vendo essa calça e essa camiseta aí de presidiário. Aqui a gente não deixa você entrar”, afirmaram. De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo, é normal os egressos saírem da cadeia com as roupas usadas lá dentro. Para piorar a situação, policiais militares (PMs) se aproximaram para expulsá-lo da estação. “Você vai sair daqui agora”, disse um deles segurando o braço do artista sem antes verificar o alvará de soltura emitido pela Justiça. Uma mulher que viu a situação lhe deu o valor da passagem e ele foi liberado pelas autoridades, o que o fez sentir na pele as humilhações que estariam por vir.

Leonardo Campos com suas cifras de violão, capítulos dos seus livros e letras das músicas que escreveu no presídio. Foto: Caio Nascimento / Estadão

“Se não fosse Sintonia, talvez eu estaria procurando emprego até hoje, porque eu passei em todas as entrevistas que prestei, mas era rejeitado quando pediam registro de antecedentes criminais”, lamenta. Mesmo após atuar na série que rodou em 190 países, Leonardo voltou a ser enquadrado pela PM para confirmar se seu personagem traficante correspondia à vida real. “Você é irmão [membro do PCC] de verdade?”, questionaram os agentes, que logo o liberaram ao apurar que a informação não procede. A empregada doméstica Regina Campos, mãe de Leonardo e do caçula Samuel, de 19 anos, conta que o ator é interessado pelas artes desde pequeno. Na adolescência, participou do teatro da igreja evangélica e chegou a dar aulas de axé em academias.

Detentos do presídio Adriano Marrey durante aquecimento para ensaiar a a adaptação teatral do livro 'O Alquimista'. Alguns conviveram e trabalharam com Leonardo Campos nas oficinas. Foto: Helvio Romero / Estadão

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Mesmo com o sucesso, o intérprete de Lindão em Sintonia ainda não conseguiu dar uma boa condição de vida para a família e segue morando com a dona Regina, de 57 anos, e o irmão em uma simples casa que divide com as tias no Morro Grande, na zona norte da capital paulista. Acredita, no entanto, que a situação melhorará com os comerciais que está fazendo e as próximas temporadas da série.

Além dele, outros dois artistas da trama se capacitaram nas aulas de teatro da penitenciária Adriano Marrey.

Alimentando sonhos pela arte

De acordo com dados da SAP, a unidade onde Leonardo e os outros dois atores cumpriram pena foi planejada para receber 1.268 presos, mas abriga 2.200 - quase o dobro do previsto. Desse total, apenas 24 (1%) fazem a oficina de teatro atualmente, após passar por um processo seletivo anual que ocorre desde o lançamento do projeto, em 2010. O baixo impacto da iniciativa no Estado faz o agente carcerário e instrutor teatral Igor Rocha, de 60 anos, sonhar mais alto. “[Quero] que isso vire política pública. O sistema carcerário do Brasil é engessado. Ninguém pergunta ao funcionário o que é importante fazer [para melhorar a situação]. Eles simplesmente vão fazendo. Isso é um problema”, critica ele, que trabalha há 21 anos nos presídios paulistas e fundou as oficinas de teatro.

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Detentos fazem expressões de ódio, amor e indiferença durante os ensaios para encarnarem seus personagens. Foto: Helvio Romero / Estadão

O desejo pela ampliação do programa não vem à toa: segundo o sistema de controle interno da SAP, apenas 11 dos cerca de 280 presos que passaram pela oficina voltaram a cometer crimes ao serem soltos, o que, para Igor Rocha, significa que o trabalho está dando certo. “Nós [presos e agentes] convivemos juntos. Então as oficinas são um meio de oxigenar o local e ter o mínimo de conflito possível. É melhor trabalhar alternativas para melhorar o cárcere do que pisoteá-lo”, afirma ele, que já foi refém em rebeliões e chegou a tomar remédios tarja preta para lidar com a depressão.

O psiquiatra Rodrigo Ramos, que é especialista em psicodrama - técnica terapêutica de encenação usada para explorar vínculos emocionais e a psique humana -, aponta que o teatro pode ser uma forma de gerar controle social. “As cadeias são recheadas de sentimentos como raiva, ódio, maledicência e desejo de vingança. Alguns exercícios do psicodrama podem trazer a descarga dessas emoções e assim colocar o indivíduo em novos caminhos”, analisa.

VEJA TAMBÉM:  Detentos participam de peça de teatro na Penitenciária Adriano Marrey

Ramos diz ainda que o teatro pode levar o preso a encenar o que está ‘engasgado’, simulando estar diante de uma pessoa sobre a qual guarda mágoas ou arrependimento. “Ele pode se imaginar falando algo para o pai opressor, para mãe que agia com descaso, o diretor do presídio ou para a sua vítima, e se sentir quase tão aliviado como se estivesse se expressado pessoalmente”, exemplifica.

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‘Pessoas recuperam pessoas’: o que dizem os presos sobre as aulas

Em meio aos ruídos de celas, portões de ferro batendo e paredes gastas do presídio Adriano Marrey, 24 presos ensaiam hoje para a peça O Alquimista, uma adaptação teatral do romance best-seller de Paulo Coelho. Todos estão cumprindo penas por tráfico de drogas ou roubo e não se intimidam com o ambiente machista e viril que os presídios costumam passar. Usam saias, encenam mulheres quando necessário e sabem separar o personagem do artista. Fernando da Silva, de 30 anos, interpreta Fátima - uma bela jovem que vive uma história de amor com um menino da trama - e não se envergonha por isso. “Não fui eu quem decidi pela Fátima. Foi ela quem me escolheu e acabei me identificando. Existe muito preconceito entre nós presos, mas para mim foi muito importante fazer esse papel, porque quebrei uma discriminação que eu mesmo tinha”, afirma ele, que é pai de três filhos pequenos e está preso há dois anos e quatro meses. “Meu nome não é mais Fernando no pavilhão. Todo mundo me chama de Fátima. Acabo brincando com isso e vou deixando acontecer.”

Presos gritam 'merda!', o tradicional grito de 'boa sorte' que artistas dão antes de subirem aopalco. Foto: Helvio Romero / Estadão

Cleverson Dias, de 40 anos, é outro que se diverte nos palcos. Ele se seduziu pela proposta de R$ 40 mil para transportar droga de São Paulo a um país europeu de avião. Com quatro filhos para criar, sem passagem pela polícia e encantado com a oportunidade de conhecer o mundo, ele aceitou a oferta, mas foi detido no aeroporto de Guarulhos e condenado a cinco anos e dez meses de prisão por tráfico internacional de entorpecentes.

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“Fiquei pensando no que falaria para os meus filhos e achei que o mundo tinha acabado. Mas cheguei aqui e vique não. Quando saímos do pavilhão e vamos para o palco ou a sala de aula, a gente esquece que está preso”, conta. Assista abaixo aos depoimentos dos presos que participam do projeto:

Christian Martins, de 39 anos, interpreta o protagonista Santiago, de O Alquimista, e participou do O Auto da Compadecida com Leonardo Campos, em 2018. Ele está preso há três anos no presídio Adriano Marrey, é pai de duas crianças e se deslumbrou com o ‘dinheiro fácil’ do tráfico de drogas diante do desemprego. Após passar cerca de um mês de “castigo”no presídio de Presidente Venceslau, que abriga membros do Primeiro Comando da Capital (PCC), ele alega que não tem esperanças com o sistema penitenciário, mas encontrou oportunidades no Adriano Marrey. “O sistema prisional é falido. A cadeia, como todo mundo sabe, não recupera ninguém. Mas aqui no Adriano Marrey encontrei pessoas, e pessoas recuperam pessoas”, destaca ele, que foi um dos responsáveis por fazer a adaptação teatral de O Alquimista. “Percebi que tinha colegas aqui capacitados para lidar com textos e eu desconhecia esse lado meu como ator. A gente chega na unidade prisional sem nenhuma perspectiva, mas aqui teve essa diferença”, elogia. O psiquiatra Rodrigo Ramos explica que esses bons sentimentos gerados na oficina de teatro são fruto da liberação natural de serotonina e dopamina no corpo, substâncias cerebrais que funcionam como antidepressivos e são capazes de emocionar. “O consumo da arte tende a ser recompensador do ponto de vista biológico”, afirma.

Mas nem tudo são flores: falta de água e comida atrapalha rendimento

Hoje com mais liberdade para falar sobre sua vida no cárcere, sem ser vigiado por agentes do Estado, Leonardo Campos expõe um outro lado do projeto teatral do presídio Adriano Marrey. Ele afirma que o combinado com os detentos era ter aula todos os dias, mas, sob alegações burocráticas - como ocorrências do Grupo de Intervenção Rápida (GIR), a ‘polícia’ dos presídios - as atividades se restringem a cerca de três ou dois dias da semana.

Detentos ensaiam para a peça 'O Alquimista', do romance de Paulo Coelho, no presídio Adriano Marrey. Foto: Helvio Romero / Estadão

Ele conta também que havia momentos que os funcionários da unidade interrompiam a distribuição de água na unidade, e os presos passavam horas - ou até mesmo o dia todo - com sede e sem banho e descarga no vaso sanitário, o que podia prejudicar o bem-estar dos alunos durante o curso. “Sentia que eles queriam ver os presos sofrendo para pagar pelos erros que cometeram. A história prova que isso sempre gerou mais violência e nunca diminuiu o crime na sociedade”, critica. Em outros momentos, Leonardo recorda que tiveram dias que as três refeições - café da manhã, almoço e jantar - demoravam para chegar e precisavam ir para o teatro com fome. “Teve uma vez que atrasaram a comida e fomos ensaiar sem comer. Voltamos e ainda não tinha chegado”, relembra. Hoje em liberdade condicional, o Lindão de Sintonia nutre expectativas com o futuro. Pretende fazer faculdade em alguma área do teatro, sonha em dar uma vida melhor para a família e frisa a importância de nunca esquecer de suas raízes e de quando era um menino que brincava pelas ruas da periferia de São Paulo. “Sem a humildade, isso que eu conquistei não vale de nada”, destaca. Mais para frente, ele não descarta a possibilidade de visitar a penitenciária Adriano Marrey para falar sobre arte, incentivar os presos a mudarem de vida e assistir aos ensaios, cujos aprendizados guarda com carinho. “Se eu não fosse selecionado para participar das oficinas de teatro, não estaria sequer nessa reportagem”, reflete.

*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

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