‘O mês das crianças me traz memórias tristes’, diz mulher paraplégica atropelada na infância

Elaine Paiva perdeu os movimentos ainda bebê, pulou a fase de brincar por problemas de saúde e hoje se reinventa ao lançar seu primeiro livro infantil com inclusão de cadeirante

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Por Caio Nascimento
Atualização:
Elaine Paiva foi atropelada em 1987 antes de completar um ano de idade. Na foto da direita, ela está enfaixada na cama do hospital, em São Paulo, aos 11 meses de vida. Foto: Caio Nascimento / Estadão | Elaine Paiva / Arquivo Pessoal

“O mês das crianças é o pior que tem, pois foi quando tudo aconteceu”. É assim que Elaine Paiva, de 32 anos, descreve seu sentimento ao falar sobre outubro de 1987. Enquanto muitos pequenos se divertiam com presentes da data, a menina ganhava um leito de hospital, após ser atropelada com apenas dez meses de vida.

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A tragédia ocorreu enquanto o bebê brincava num andador na calçada de sua casa na Penha, zona leste de São Paulo: em segundos, um Chevrolet Caravan passou por cima dela duas vezes. Quem dirigia era um jovem de 17 anos, sem habilitação, que a marcou com sequelas até hoje: teve costelas quebradas, fratura exposta, traumatismo craniano e ficou paraplégica.

A negligência do adolescente trouxe prejuízos emocionais para Elaine. Seus primeiros três anos de idade se resumiram a internações solitárias, sem a presença de familiares. Sua mãe, a escriturária Marlene Paiva, de 66 anos, trabalhava para sustentar a família e precisava deixar a menina sozinha com os médicos na maior parte do dia, já que nenhum outro parente se dispunha a ajudar.

À esquerda, a mãe de Elaine, Marlene Paiva, equilibrava a garota durante a festa de seu aniversário de um ano. Até hoje a mulher, aos 66 anos, acompanha a filha. As duas moram sozinhas em uma casa de Pirituba, zona norte de São Paulo. Foto: Elaine Paiva / Arquivo pessoal | Caio Nascimento / Estadão

O tempo passou e as dificuldades continuavam. Nos anos 1980, não era comum encontrar cadeiras de rodas infantis, o que a fez ficar até os cinco anos num carrinho de bebê. “Perdi a fase de aprontar, de soltar a mão da minha mãe, de mexer nas coisas para matar a curiosidade e de me equilibrar pelas paredes para aprender a andar”, afirma. “Me sinto como um animal selvagem que foi capturado ainda filhote e resgatado na fase adulta: não pode mais viver na selva pois perdeu os instintos”, compara.

Os obstáculos, porém, não impediram Elaine de interagir com as outras crianças. Dos seis aos nove anos, sua cadeira de rodas foi destaque para os pequenos de sua turma na escola: gostavam de empurrá-la e faziam a garota se sentir incluída nas brincadeiras. “Era um contato puro, pois não me estranhavam por ser deficiente. Queriam me conhecer e brincar”, analisa. “Mas lembro de pais que tiraram os filhos de perto de mim. Achavam que eu tinha algo contagioso. Adultos são assim: colocam suas emoções e preconceitos sobre as crianças para elas também crescerem discriminando a gente igual”, completa.

Aos 11 anos, a menina fez uma música pedindo "um mundo onde o amor seja infinito para todas as idades". Ouça:

‘Você não vai prosperar por causa da deficiência’

A alegria da menina no colégio durou pouco. Conforme os hormônios da puberdade afloravam, os jovens deixavam de lado a ingenuidade da infância para dar espaço à exclusão. Ela começou a ser ignorada e uma simples interação, como pedir uma borracha emprestada, já era motivo para riso. “Na adolescência sofri muito bullying. Ninguém passava o tempo comigo no recreio. Quando uma menina começou a falar comigo, a outra passou a inventar mentiras a meu respeito. Me chamava de galinha de rodas”, lembra.

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O preconceito e as limitações aumentaram com o tempo. Quando conseguiu seu primeiro emprego como assistente administrativa, aos 19 anos, no Banco Real - atual Santander - em 2005, a alta cobrança de seus chefes a fez deixar de lado os cuidados que deveria ter. Por falta de tempo para alongamentos no ambiente profissional, ela prejudicou sua circulação sanguínea no ísquio - osso abaixo do quadril -, apodrecendo a região sem perceber, devido à falta de sensibilidade.

Elaine Paiva entrou como estagiária e depois foi efetivada no Banco Real. Antes, ela trabalhava na C&A e também enfrentava problemas de acessibilidade. A Lei das Cotas para Deficientes, de 1991, prevê que empresas com 100 ou mais funcionários tenham entre 2% e 5% dos funcionários com alguma deficiência, o que não garante que o tratamento adequado ocorra na prática. Foto: Caio Nascimento / Estadão

Além disso, contraiu tendinite e divertículo na bexiga - por falta de tempo para sondar a urina. As dificuldades a colocaram ainda mais à margem da sociedade: trabalhou por oito anos na empresa e, enquanto seus colegas cresciam lá dentro, ela se via estagnada.

Formada em Letras, fluente em inglês e com experiência de mais de cinco anos no setor bancário, nada adiantou. A jovem ganhava menos da metade do salário dos funcionários com o mesmo cargo que o seu e nunca foi promovida. “A própria médica de lá disse que eu não prosperava por causa das limitações, e que eu tinha que dar graças a Deus por ter um emprego”, recorda.

O atropelamento fez o braço direito de Elaine ficar torto. Por causa disso, ela usava com mais intensidade o esquerdo no trabalho, o que contribuiu para a tendinite. Na foto da direita, ela tinha seis anos de idade. Foto: Caio Nascimento / Estadão | Elaine Paiva / Arquivo pessoal

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A discriminação de Elaine não era exceção no Brasil da época. De acordo com o Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia 24,6 milhões de pessoas com alguma deficiência no País, das quais só 180 mil (0,7%) estavam em postos formais de trabalho. Passadas quase duas décadas, o problema ainda persiste: dos atuais 45,6 milhões de deficientes, a última Relação Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério da Economia, de 2017, aponta que apenas 441,3 mil (1%) deles possuem algum emprego registrado em carteira.

A exclusão revela cicatrizes na vida de Elaine Paiva. Ela não só venceu um processo na Justiça por danos materiais contra o Banco Real em 2018, como precisou se aposentar por invalidez física e psicológica aos 25 anos. “Meus problemas emocionais se agravaram com toda essa situação. Deixei de vivenciar muitas coisas e lá eu percebi que o mundo é cinza”, diz ela, que hoje trata a depressão com remédios.

Elaine leva em mãos os medicamentos que toma diariamente. Dentre eles, está oDesvenlafaxina Monoidratado, voltadopara o tratamento do Transtorno Depressivo Maior (TDM). Foto: Caio Nascimento / Estadão

Vale ressaltar que o problema não é um caso isolado. Em 2016, o Santander, que incorporou o Real, foi também obrigado a indenizar por danos morais Eduardo Martins, um ex-funcionário com má-formação nos braços e na perna direita, no valor de R$ 200 mil por falta de acessibilidade.

A empresa tem um projeto de diversidade e inclusão com o slogan “aqui você pode ser quem você é”. No site oficial, afirma que trabalha para “construir uma cultura de respeito, inclusão e equidade, que permita que as pessoas desenvolvam seus melhores talentos com suas características únicas.”

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‘Precisei da imaginação e dos livros para viver’

Apesar das dificuldades, Elaine se considera uma mulher forte. Luta contra a falta de acessibilidade de Pirituba, onde mora na zona norte de São Paulo, e já buscou apoio do vereador Eliseu Gabriel (PSB/SP), em 2014, e do subprefeito regional Edson Brasil, em 2019.  Ela pediu aos políticos projetos para a instalação de balanças adaptadas para cadeirantes na região e o nivelamento das ruas esburacadas do entorno em prol dos deficientes, mas não adiantou. Procurados pela reportagem, Eliseu, cuja função é fiscalizar, legislar e cobrar do poder público solicitações, afirma que enviou um ofício para a Prefeitura de São Paulo, que nada fez.

Já a subprefeitura de Pirituba, que é a responsável direta pela resolução do problema, promete que vai vistoriar e fiscalizar as calçadas. “Caso estejam em desacordo com a Lei nº 15.442/2011 [que dispõe da construção e manutenção de passeios públicos], os proprietários serão intimados a sanar as irregularidades no prazo de 60 dias. O não atendimento acarretará em multas”, assegura em nota. A cadeirante chegou a se reunir com o antecessor de Brasil, Ivan Lima, em março deste ano, mas também não surtiu efeito.

As calçadas esburacadas e com obstáculos de sua rua em Pirituba mostram, segundo ela, a negligência do poder público com quem mais precisa. Foto: Caio Nascimento / Estadão

Elaine conta ainda que tem que "aguentar o perigo" e as buzinas dos carros quando sai de casa:

Além desse engajamento, a mulher se encontrou na literatura. Sempre gostou de escrever, ler e de se imaginar em fases que não viveu.  Como nem sempre tinha brinquedos nos leitos dos hospitais, ela improvisava sua diversão sozinha, lendo livros e criando bonecas e cavalinhos com as mãos. “Isso me ajudava a passar o tempo. Sempre precisei da imaginação e dos livros para viver”, expõe. Ainda hoje é assim. À noite, é o momento que ela extravasa: sonha que está brincando e se aventurando mundo afora, como narra no áudio abaixo.

Marlene Paiva sai com Elaine quando ela precisa. As duas enfrentam juntas a falta de acessibilidade urbana. Foto: Caio Nascimento / Estadão

Aposentada há sete anos, Elaine passa o dia em casa. Faz tarefas domésticas, seus procedimentos de saúde, costura suas roupas - já que nem sempre consegue encontrar peças que se encaixam em seu corpo - e se encontra uma vez por semana com sua sobrinha Cora, de dois anos de idade, com quem brinca e conta histórias. Ouça as duas brincando:

A diversão da dupla inspirou Elaine a escrever seu primeiro livro infantil publicado, A Chave Mágica, sobre uma viagem interplanetária que inventou com a menina. Ilustrada com desenhos da tia na cadeira de rodas e da garota, a mulher afirma que a obra pode ajudar alunos do Ensino Fundamental I nas aulas de ciências sobre o universo, exercita o lúdico e mostra para os pequenos como é natural viver ao lado de uma pessoa com deficiência. Quando tinha oito anos, ela escreveu um livrinho chamado Um Dia na Piscina, enquanto estava internada no hospital.

Elaine guarda até hoje sua história 'Um Dia na Piscina', que escreveu no hospital para passar o tempo. Foto: Caio Nascimento / Estadão

“Quando uma criança convive com a gente, ela libera o melhor dela, pois tende a ser prestativa e demonstra empatia. A Cora sempre pergunta se preciso de ajuda, se estou bem e ela também pega as coisas para mim. Nós, seres humanos, somos assim: nascemos com o instinto de solidariedade e vamos perdendo quando não trabalhamos esse lado. Meu livro estimula essa bondade”, analisa.

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Quando a primavera ganhou cores

A psicóloga e escritora de livros infantojuvenis com foco na diversidade social, Janaína Leslão, explica que a consciência gerada por esse tipo de narrativa ajuda meninos e meninas a relativizarem os preconceitos e a exclusão.

“Quando uma criança lê um livro, ela entra nas ilustrações, na história e isso exercita o lúdico, a faz se imaginar sendo amiga de alguém cadeirante ou de mobilidade reduzida”, exemplifica. “Assim, quando ela encontrar uma pessoa semelhante àquela que leu, não vai estar diante de uma experiência nova. Vai ter em seus sentimentos o que vivenciou por meio da literatura”, afirma.

Diante disso, Elaine Paiva nutre esperanças por um futuro mais inclusivo e deu cores para a “realidade cinza” que enxerga na primavera de outubro. No  mesmo mês em que foi atropelada, há 32 anos, ela lançará a obra A Chave Mágica em três unidades da livraria Cultura, em São Paulo, no próximo dia 26, sábado.

A mulher confessa que as memórias tristes continuam e evita assistir televisão nesta época do ano para não ver propagandas do Dia das Crianças. No entanto, ela se conforta ao seguir firme com seu trabalho literário para a primeira infância e já sonha em escrever mas livros: “Quero ajudar a formar uma geração de jovens mais empáticos e inclusivos”.

'A Chave Mágica' custa R$ 30 reais e é voltado para crianças de seis a 12 anos. Foto: Caio Nascimento / Estadão

Lançamentos de ‘A Chave Mágica’

A  venda do livro ocorre neste site.

Shopping Villa Lobos

Data: 26 de outubro, das 13h às 14hLocal: Livraria CulturaEndereço: Av. das Nações Unidas, 4777 - Alto de Pinheiros, São Paulo - SP, 04795-100

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Shopping Iguatemi

Data: 26 de outubro, das 15h às 16hLocal: Livraria CulturaEndereço: Av. Brg. Faria Lima, 2232 - Jardim Paulistano, São Paulo - SP, 01406-100

Shopping Market Place

Data: 26 de outubro, das 17h às 18hLocal: Livraria CulturaEndereço: Av. Dr. Chucri Zaidan, 902 - Vila Cordeiro, São Paulo - SP, 04795-100

Veja abaixo a íntegra da subprefeitura de Pirituba

"A Subprefeitura Pirituba vai vistoriar a região e fiscalizar os passeios públicos. Caso estejam em desacordo com a Lei Nº 15.442/2011, os proprietários serão intimados a sanar as irregularidades no prazo de 60 dias. O não atendimento acarretará em multas.A Secretaria Municipal das Subprefeituras esclarece que, por meio do Plano Emergencial de Calçadas (PEC), serão investidos R$ 400 milhões, os quais resultarão em 1,5 milhão de metros quadrados de calçadas requalificadas até o fim de 2020. Na região de Pirituba, que também receberá as intervenções, foram selecionadas calçadas com grande fluxo de pedestres, cujos reparos impactarão positivamente a população, inclusive estabelecendo padrões de qualidade e acessibilidade para gestões futuras."

*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais

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