'Guerra mundial' entre bairros de SP viraliza no Facebook e pode ser usada na educação

Jogo conquistou usuários da rede social ao redor do mundo e cativou brasileiros com as versões carioca e paulistana; entenda como funciona

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Por Caio Nascimento
Atualização:
Mapa do jogo se modifica a cada batalha. Vence o bairroque dominar todos os outros. Foto: Guerra Mundial São Paulo 2020 / Facebook

O ano é 2020 e um conflito entre os 96 bairros da cidade de São Paulo assola a metrópole mais rica do País. Pinheiros conquista a Consolação, Jardim Paulista domina a Barra Funda e a vontade de vencer toma conta dos moradores de cada região da capital. Essa história é impraticável na vida real, mas se tornou possível no Facebook e reúne milhares de pessoas.

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Tudo começou quando três internautas de diferentes lugares do mundo passaram a simular batalhas entre territórios na rede social por meio da WordWarBot (entre países), CivilWarBot (Estados Unidos) e a ItaliaGuerraBot (Itália), que juntas somam mais de 365 mil seguidores.

A partir daí, essas iniciativas chegaram ao Brasil pelas páginas Guerra Mundial São Paulo 2020 e Guerra Mundial Rio 2020. De acordo com a carioca Gabriela Trindade, que acompanha a brincadeira, a ideia promove uma sensação de pertencimento e reforça vínculos interpessoais, já que os cidadãos torcem pelo bairro onde moram.

"O afeto pelo território é muito importante em locais que não são tão valorizados, que não são consideradas nobres. É difícil ver moradores desses lugares nutrindo amor e orgulho por essas regiões. O  jogo acaba fazendo esse movimento de valorização", diz ela.

Mapa do jogo do Rio de Janeiro no começo dos duelos. Foto: Guerra Mundial Rio 2020 / Facebook

A opinião de Gabriela se refletiu nas opiniões em torno da derrota da favela da Rocinha para Ipanema - região nobre do Rio de Janeiro. Sem perder de vista a diversão, mais da metade das pessoas que interagiram com a postagem usaram as reações "grr" (bravo) e "triste" para expressar descontentamento. "Um dos momentos mais tristes até agora", escreveu um internauta. "O morro do Vidigal vingará a Rocinha", disse outro.

Um caso parecido aconteceu em um dos bairros mais pobres de São Paulo: Marsilac dominou o vizinho Grajaú - ambos da periferia -, e usuários da rede social lembraram da influência de grupos indígenas tupi-guarani na região, como a aldeia Tekoa Yrexakã. "Mil índios incutiram em três frentes. Neste momento, tem 40 fechando a minha rua", brincou um rapaz.

Mas como o jogo funciona?

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Os administradores das páginas usam o software de monitoramento geográfico Quantum GIS - chamado por eles de robô - e optam por uma área do mapa da plataforma. Em seguida, no caso das adaptações brasileiras, eles determinam que o programa deve selecionar, aleatoriamente, um bairro e relacioná-lo com um próximo, tomando como referência a distância entre o centro geográfico (centróide) de cada um.

Por exemplo: o centro geográfico da Liberdade está perto da e do Bixiga. Portanto, se a Liberdade for escolhida, há chances de ela "dominar" um dos dois ou outro bairro que está nas redondezas. Feito isso, vem o trabalho mecânico: o responsável pelo game publica no Facebook que o bairro selecionado derrotou o relacionado a ele.

'Guerra Mundial' de bairros pode ajudar na sala de aula

Guilherme Braga Alves, de 25 anos, criou a disputa do Rio de Janeiro e espelha no jogo a sua trajetória nos estudos. O jovem é formado em Relações Internacionais, fez mestrado em Políticas Públicas e começou há pouco tempo seu doutorado em Geografia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o que o leva a pensar a brincadeira no campo da educação.

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"Meu desejo é que os professores usem essa ideia para falar sobre geografia local. Nos comentários da página, eu tenho percebido como esse tema é mistificado… a divisão de bairros que as pessoas têm em mente no dia a dia não é semelhante à da prefeitura. Assim, sentem falta do lugar onde elas moram no combate", afirma. "Portanto, um dos pontos positivos dessa 'guerra mundial' é levar para a educação uma discussão pública de como os limites administrativos da cidade são definidos", explica.

A internauta Gabriela Trindade enxerga importância nisso e conta que fica surpresa ao ver que existem bairros dos quais ela nunca ouviu falar. "Alguns vão buscar informações sobre o local, comentam na página alguma coisa sobre o lugar e nisso vamos aprendendo", analisa.

O historiador Marcos Lourenço, de 30 anos, é o criador da versão de São Paulo e também acredita no poder educativo do jogo. "Daria para fazer algo interdisciplinar na escola com um projeto de 'disputa' entre bairros com quizzes. Isso ajudaria os alunos a se apropriarem e entenderem mais o espaço onde vivem", sugere. Ele destaca ainda a possibilidade de os educadores passarem noções de programação básica para os alunos por meio do robô que cria as batalhas.

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Guilherme Braga (à esquerda) e Marcos Lourenço (à direita) são os criadores do 'Guerra Mundial Rio 2020' e 'Guerra Mundial São Paulo 2020', respectivamente. Foto: Arquivo pessoal

A criatividade também faz parte da brincadeira. Em uma rodada na qual alguns bairros dominados voltaram a ser soberanos, depois de uma votação do público, Marcos simulou que o bairro de Lajeado, na zona leste de São Paulo, transformou-se em uma "pequena Chernobyl". Na história contada por ele, governos estrangeiros aliados lançaram um míssil nuclear no território e nos vizinhos, deixando-os inatacáveis por 26 rodadas. A ideia poderia contextualizar uma aula de química sobre radiação ou uma de geopolítica internacional, por exemplo.

Vendo o engajamento das pessoas, Guilherme Alves pretende criar uma guerra entre os municípios vizinhos da cidade do Rio de Janeiro quando o jogo atual terminar.

Resgatando a memória

Maria Cândida Seabra, linguista, mestre e doutora pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em onomástica (ciência dos nomes de lugares, de pessoas e em geral), diz que esse jogo pode ajudar a sociedade a pensar mais nas raízes históricas que as regiões possuem. 

Além disso, ela acredita que os nomes dados às ruas e bairros de uma cidade deveriam receber uma atenção especial das escolas, uma vez que podem trazer informações sobre diversas áreas do conhecimento humano e resgatar a memória e a história social que são esquecidas com o passar do tempo.

"Os nomes carregam informações valiosas que podem se referir ao relevo, hidrografia, minerais, flora, fauna, agricultura, indústrias, religiões e pessoas que viveram em uma determinada localidade e que foram benfeitoras lá", explica.

Em meio a tudo isso, já foram mais de 150 rodadas na Guerra Mundial São Paulo, e 300, na do Rio de Janeiro. Ambos os administradores das páginas contam que receberam muitos elogios e mensagens de curiosos tentando entender as batalhas. No entanto, nenhum sabe até o momento se houve a aplicação do jogo em alguma escola ou se professores adotaram a ideia na sala de aula.

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*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

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