Dia Nacional do Voluntariado: pandemia cria desafios para a área

Presidente de ONG, que atua há 31 anos como voluntário, destaca expectativa de que ‘onda de solidariedade’ continue no futuro

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Por João Pedro Malar
Atualização:
A ONG Anjos da Noite conta apenas com o trabalho de voluntários, e ajuda cerca de 800 pessoas em situação de rua Foto: Instagram / @anjosdanoite.ong

O Dia Nacional do Voluntariado é celebrado nesta sexta-feira, 28 de agosto. A data tem como objetivo não apenas homenagear a atividade, mas também incentivar mais pessoas a se tornarem voluntárias. Neste ano, além dos desafios tradicionais da prática, os voluntários se depararam com as mudanças trazidas pela pandemia do novo coronavírus.

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Há a preocupação com a própria saúde, exigindo cuidados para evitar o contágio e transmissão do vírus. Ao mesmo tempo, tornou-se necessário não apenas manter ações de assistência social, mas também intensificá-las, devido aos impactos sociais e econômicos da pandemia.

Kaká Ferreira, presidente da ONG Anjos da Noite, resume o cenário: “aumentou o número de pessoas necessitadas, mas também o de pessoas que querem ajudar”. Para ele, a pandemia trouxe também uma “onda de solidariedade”, e o voluntariado é um de seus reflexos.

Diante dessa realidade, o Dia Nacional do Voluntariado ganha uma importância maior, tanto para celebrar os voluntários quanto para incentivar as pessoas a ajudarem mais o próximo. A data foi criada no Brasil pela Lei nº 7.352, de 28 de agosto de 1985, com esse objetivo.

Marcelo Nonohay, que já atuou como voluntário, foi beneficiado pelo voluntariado e atualmente é diretor da MGN, empresa de gestão de projetos de transformação social, explica que o voluntariado é uma “doação do tempo”. Um voluntário realiza diversas ações de assistência social sem receber uma remuneração, mas mantendo um compromisso com uma causa ou instituição.

Além do voluntariado, também existem ações feitas por empresas ou doações de dinheiro ou produtos. Nos últimos anos, segundo Nonohay, as próprias empresas têm realizado projetos de voluntariado com os funcionários, além dos de coleta de doações, que acabou se tornando o foco por conta da pandemia.

“Falando de voluntariado, filantropia e doações, a gente alcançou um nível recorde [na pandemia]. É muito positivo em um País que ainda tem muito a crescer nessa área”, comenta o diretor.

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Nonohay destaca que, se comparado a países em condições socioeconômicas semelhantes ou mais desenvolvidas, o Brasil ainda não tem uma forte “cultura” de doar, seja tempo, dinheiro ou produtos. Para ele, há recentemente um “claro interesse das pessoas em se mobilizar”, o que é positivo.

“As pessoas têm que entender que precisam ajudar a comunidade. Parece que as pessoas tratam o que é público como sendo de ninguém, mas é de todos nós. O Estado deveria fazer mais, mas nós também podemos fazer mais, temos esse papel na sociedade, por vontade própria”, defende ele, lembrando que a raiz da palavra voluntariado está em “vontade”. 

Nonohay também considera importante pensar sobre como será o futuro depois da pandemia: “podemos aproveitar para discutir e trabalhar essa questão cultural de entender que precisa participar da vida da comunidade, não pode ter como normal o 'antigo normal', porque não era para ser algo normal. A desigualdade já não era normal. Temos que atuar para transformar”.

Como é ser voluntário durante a pandemia?

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Kaká Ferreira fundou a Anjos da Noite há 31 anos, no dia 22 de agosto de 1989. Ele conta que a ideia de criar a instituição surgiu em um dia quando estava saindo do trabalho e, parado, esperando o semáforo abrir, viu uma pessoa em situação de rua que veio pedir ajuda. “Eu pensei que ele ia morrer”, lembra Kaká, destacando que era um dia frio com chuva intensas.

Ele, então, deu roupas para o homem e levou-o até um restaurante para comer algo. “Isso me fez ver a importância do serviço social. Ele ficou feliz, fiz a diferença na vida dele”. Foi a partir desse “estalo”, que a Anjos da Noite nasceu. Hoje, ela conta com 90 voluntários, atuando todos os sábados nas ruas de São Paulo para levar comida, água, calçados, cobertor e roupas para cerca de 800 pessoas em situação de rua.

“Comecei e nunca quis parar”, comenta Kaká sobre o voluntariado. Com 67 anos, ele segue atuando na organização, mesmo durante a pandemia. “Nunca passou pela minha cabeça [parar durante a pandemia], mesmo porque é o momento em que eles mais precisam, porque muitos voluntários pararam. É mais uma razão, não queremos abandoná-los”, afirma ele.

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Ele destaca, porém, que para continuar a atuação todos os membros da instituição redobraram os cuidados, não apenas para evitar contrair o novo coronavírus, mas também para não passá-lo para colegas ou para quem recebe a ajuda. Kaká considera que criar o hábito de trabalhar seguindo as normas sanitárias e o uso de EPIs [Equipamentos de Proteção Individual] apenas agregou ao trabalho.

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Kaká comenta que tentou trazer conhecidos para o voluntariado ao longo dos anos, desde quando começou a atuar com mais três pessoas, mas já ouviu muitas negativas: “A gente tentou trazer um monte de gente, não com discurso, mas mostrando as atividades, o impacto. Escutamos muita gente dizer que é perda de tempo, que não ajuda, que é politicamente incorreto. Sendo ou não, tem uma necessidade urgente de assistência, alguém precisa fazer”. 

Mas ele tem notado um aumento do interesse das pessoas em doar, algo que se intensificou durante a pandemia. Ele considera que essa “onda de solidariedade” é resultado do momento, mas teme que, como em outras situações, ela acabe se dissipando depois que a pandemia passar.

“Quando começou a pandemia todo mundo queria ajudar, e depois, nem elas têm mais [recursos] para doar, e tem gente com medo de botar a mão na massa com medo de pegar o covid-19”, resume Kaká. 

Ele considera que o aumento no interesse é importante, já que a situação de pessoas em situação de vulnerabilidade “está assustadora”, com um crescimento na quantidade de pessoas precisando de ajuda. O cenário piorou com a última onda de frio que atingiu São Paulo em agosto: “esse inverno foi mais rigoroso, nos picos. Essa onda de frio foi horrível, ainda bem que está indo embora. Nesses momentos é que o morador de rua mais precisa de ajuda”.

Apesar das dificuldades, Kaká destaca os benefícios de praticar o voluntariado: “a sensação de você estar sendo útil na sociedade, você pode fazer a diferença e é importante sentir que faz parte da construção de um mundo melhor”. Para ele, “o que faz a diferença na nossa vida é ajudar os outros sem esperar nada em troca”. 

Nesse sentido, ele espera que mais pessoas se conscientizem sobre a importância do voluntariado, e também tentem dedicar tempo à causa. “Eu acho que nós estamos percebendo que unidos nós seremos mais fortes”, opina, considerando que é importante manter e fomentar essa percepção.

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Kaká também destaca os momentos em que encontra pessoas na rua que agradecem pela ação do Anjos da Noite, “elas dizem que não estão mais na rua, conseguiram isso ou aquilo, estão em casa, formando família. A gente fica feliz porque vê o resultado, o trabalho não foi em vão”. Mas também existem momentos difíceis, “como quando você está na rua, vai levar um cobertor e a pessoa já está morta. Isso deixa a gente mal pra caramba”.

“Eu acho que ainda vale a pena, sair do eu pra ir pro nós. O trabalho voluntário dá um senso de gratidão para sua vida, automaticamente tem que ter empatia, se colocar no lugar do outro, você começa a ter senso de gratidão com o que tem”, comenta Kaká.

Ele conclui, pensando na data, que o “voluntariado é como o Sol, que ilumina  a vida de todo mundo. Ele ilumina a minha. É a coisa mais importante na minha vida hoje. Não tenho intenção de parar”.

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*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais

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