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Deus é uma pergunta, não uma resposta

A preocupação pode legitimar a crença ou a descrença, mas não pode torná-las verdadeiras

Por William Irwin
Atualização:
O crente deve conceder que não sabe com certeza se Deus existe. Não há fé sem dúvidas Foto: Pixabay

The Stone é um espaço de filósofos contemporâneos e outros pensadores para discussão de temas atuais e eternos.

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Perto do final do romance existencialista de Albert Camus, O Estrangeiro, Meursault, o protagonista, recebe a visita de um padre que lhe oferece conforto ante sua iminente execução. Meursault, que nunca se preocupara com nada do gênero, não aceitou. Ele é um ateu numa trincheira. Nunca fora de um ateísmo estridente, mas diz que não tem tempo para o padre e sua conversa sobre Deus. Para ele, Deus não é a resposta. 

Cerca de 70 anos depois, Kamel Daoud, em seu romance The Mersault Investigation, de 2013, retoma o fio da história de Camus. Numa cena no final do romance, um imã persegue Harun, irmão do árabe sem nome assassinado em O Estrangeiro. Harun divulga então uma litania sobre os próprios pecados, culminando com a declaração de que "Deus é uma pergunta, não uma resposta". A frase de Harun me afetou como professor e estudante de filosofia. A pergunta é permanente; respostas são temporárias. Vivo para a pergunta.

Todo ateu honesto tem de admitir que tem dúvidas, que às vezes acha que pode estar errado, que, afinal, pode haver um Deus - senão o da tradição judaico-cristã, um Deus de algum tipo. Nathaniel Hawthorne disse sobre Herman Melville: "Ele nem consegue crer nem se sente confortável na descrença; e é muito honesto e corajoso para não tentar uma coisa ou outra". Viver num estado de dúvida, incerteza e abertura sobre a existência de Deus é uma abordagem honesta da questão. 

Não há resposta fácil. Na verdade, a pergunta pode ser fundamentalmente irrespondível. Ainda assim, há consequências potencialmente desagradáveis que podem surgir de decisões ou conclusões, e a pessoa tem de ser responsável por elas. 

Qualquer um que ocasionalmente não se preocupe sobre ser ou não uma fraude quase certamente o é. Tampouco a preocupação absolve; alguém que se preocupe ocasionalmente com isso pode ser mesmo uma fraude. Igualmente, quem nunca se preocupa sobre a existência ou não de Deus quase certamente tem uma crença fraudulenta. A preocupação pode legitimar a crença ou a descrença, mas não pode torná-las verdadeiras. 

Pessoas que têm certezas sobre Deus me preocupam - tanto os que acreditam quanto os que não acreditam. Elas não ouvem o lado do outro e estão sempre prontas a impor sua visão. E é impossível estar certo sobre Deus. 

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Perguntaram a Bertrand Russell o que ele diria a Deus, se existisse, ao se encontrar com ele no julgamento. Russell respondeu: "Você (Deus) não nos deu evidências suficientes". Mesmo os crentes podem apreciar a resposta do filósofo. Deus não deixa as coisas fáceis. Se existe, ele é um deus absconditus, o Deus oculto. Não se mostra, sem ambiguidade, a todos, e as pessoas discordam sobre sua existência. Deveríamos todos sentir e expressar humildade ante a questão, mesmo acreditando que as probabilidades pendam fortemente para uma determinada resposta. De fato, a busca, de mente aberta, pela verdade pode unir crentes e descrentes. 

Num ensaio anterior em The Stone, Garay Gutting repensou a aposta de Pascal. Mais do que considerá-la uma aposta na existência de Deus, o que tem tremendas consequências de um lado e consequências relativamente triviais de outro, devemos considerá-la uma aposta em se apoiar uma "dúvida de indiferença" ou uma "dúvida de desejo". Dúvida de indiferença é simplesmente uma questão de não ligar, e essa dúvida não apresenta benefícios claros. Em contraste, uma dúvida de desejo aborda a questão com a esperança de que se encontre um poder mais alto que possa dar maior significado e valor à existência humana. Na visão de Gutting, a escolha é óbvia. 

É claro que os não crentes objetarão que existem várias alternativas seculares para se encontrar significado e valor na vida. Adicionalmente, há o pressuposto construído sobre a aposta de Pascal de que estejamos falando do Deus da tradição judaico-cristã. Não crentes podem não ver razões que favoreçam essa particular divindade. Assim, a "dúvida de desejo" de Gutting precisa ser mais explicitamente concebida como uma abertura para a questão na qual os não crentes explorem o que várias tradições religiosas têm a oferecer. Os não crentes podem abraçar os ensinamentos éticos do cristianismo, as práticas de ioga do hinduísmo, as técnicas de meditação do zen budismo ou qualquer uma do vasto leque de ensinamentos e práticas que as religiões do mundo têm a oferecer. Tal dedicação pode levar os não crentes a acreditar ou não em Deus.

Essa proposta também pode ser tomada em outra direção: não deveria haver crença dogmática. O crente deve conceder que não sabe com certeza se Deus existe. Não há fé sem dúvidas. O monge trapista Thomas Merton escreveu que a fé "é uma decisão tomada total e deliberadamente à luz de uma verdade que não pode ser provada - não é a simples aceitação de uma decisão tomada por outra pessoa". 

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De fato, uma crença sem dúvidas não é exigência de nenhum Deus do amor, e não deveria ser ostentada como galardão. Do mesmo modo que os não crentes deveriam ter uma dúvida de desejo, os crentes deveriam ter uma fé tocada pela dúvida. Tal dúvida pode tornar a crença mais atraente ao submetê-la a risco e forçá-la a renovar-se, levando-a do mundano ao transcendente, como quando um cristão mergulha na fé para crer na ressurreição. 

Todos podemos conviver com uma sucessão de dúvidas. Num extremo, alguns abraçarão a certeza religiosa; em outro, alguns adotarão a certeza ateia. Muitos vão oscilar continuamente entre as duas opções. 

O que é importante é o território comum da pergunta, não a resposta. Seguramente, é possível respeitar qualquer um que aborde a questão honestamente e com mente aberta. O diálogo religioso ecumênico e entre fés aumentou substancialmente em nossa época. Podemos e devemos ampliar esse diálogo com a inclusão de ateus e agnósticos, com o reconhecimento de que todos somos a humanidade e também parando de ver o próximo como inimigo numa guerra espiritual ou intelectual. Mais do que procurar a segurança de uma resposta, talvez devêssemos celebrar coletivamente a incerteza da questão. 

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Isso não significa que devamos parar de tentar convencer os outros de nossos pontos de vista. Longe disso. Deveríamos tentar despertar dúvidas nos outros enquanto permanecemos abertos para absorver as dúvidas deles. Num espírito de tolerância e humildade intelectual, deveríamos nos ver como parceiros de uma conversação contínua, abordando essa interminável dúvida. 

William Irwin é professor de filosofia em King's College e autor de The Free Market Existentialist: Capitalism Without Consumerism (O existencialista do livre-mercado: capitalismo sem consumeirismo)

Tradução de Roberto Muniz

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