'Dei à luz crianças que serão muito amadas', diz mulher que foi 'barriga solidária' de casal gay

Assim como Kim Kardashian, brasileiros que sonham em ter filhos também recorrem a mulheres férteis; entenda os riscos, questões jurídicas e procedimentos

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Por Caio Nascimento
Atualização:
Chances de engravidar caem para 10% por tentativa aos 40 anos de idade. Foto: Pixabay / @Free-Photos

Juliana Paz, de 30 anos, deu à luz gêmeos há pouco mais de um mês para concretizar o sonho de Everton Lopes e Marco Bianco de ter filhos. A mulher é mãe de três crianças e diz ser realizada com a família, o que a sensibilizou para ceder o útero a dois bebês que não seriam seus.

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Moradora da zona leste de São Paulo e casada há 12 anos, ela conta que não passou por complicações na maternidade e os meninos nasceram saudáveis, fruto de uma fertilização in vitro. "Todos ficaram felizes. Então o sentimento que eu tenho é de missão cumprida, de realizar o sonho de amigos", afirma.

Juliana recorda que não sentiu apego materno em nenhum momento da gravidez, mas todos os laços afetivos se traduziram em "carinho e cuidado". A relação foi tão natural com a gestação que seus próprios pais veem as crianças sem qualquer estranhamento. "Minha família é espírita e seguimos o conceito de solidariedade, de fazer o bem sem olhar a quem", diz. "Os meninos ficaram muito próximos de nós e criamos um vínculo muito legal de amizade [com Everton e Marco]".

De acordo com a psicóloga Michella Morcelli, que atende há mais de dez anos casais inférteis e mulheres com barriga solidária, atos como o de Juliana têm crescido cada vez mais ao longo dos anos no Brasil. No entanto, nem todas as interessadas em se voluntariar estão preparadas. "Por meio da avaliação psicológica, eu consigo identificar que talvez o desejo em ajudar seja da boca para fora, porque pode ser que essa vontade não esteja embasada no que ela me apresenta inconscientemente", diz a especialista, que atua com a psicanálise.

A explicação de Michella se espelha na história de Cristiano Cabral, de 25 anos, e seu companheiro Marcelo, de 39. Os dois são do município de Tocantins, em Minas Gerais, e passaram por três experiências frustradas ao tentar ter um filho por barriga solidária. "Quando chegava no dia de ganhar o bebê, elas sumiram do nada, sem dar explicações", lamenta. O casal já buscou ajuda das familiares e amigas, mas nunca obteve sucesso. "Umas não quiseram porque não podiam engravidar e outras tinham medo de pegar amor durante a gestação e não conseguirem entregar a criança para nós", conta.

Riscos e procedimentos

Fernanda Castellari, de 23 anos, mora no Rio de Janeiro e também foi barriga solidária. Diferente de Juliana, que recorreu a um profissional, a carioca optou pela inseminação artificial caseira - método em que basta inserir o sêmen do doador em um pote de coleta (como aqueles usados em exame de urina), puxar o líquido com uma seringa e introduzir na vagina. A prática é uma escolha barata diante dos valores cobrados pelas clínicas particulares, que podem chegar a até R$ 20 mil, mas é perigoso para a saúde do feto e da mulher.

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"Há muitos riscos de contaminação pelo HIV, hepatite, sífilis, gonorreia e outras doenças graves. Além disso, o material [de coleta] pode estar contaminado e trazer graves problemas de saúde", diz o médico especialista em reprodução humana Fernando Prado, da clínica NeoVita.

Prado explica que a fertilização in vitro traz resultados melhores e envolve "alta tecnologia médica". A técnica tem taxas de sucesso em torno de 40% a 50% para cada tentativa, e as chances podem passar de 80% nas três primeiras investidas para mulheres de até 35 anos. Enquanto isso, o êxito da inseminação intrauterina está em torno de 20% a 25%.

Os maiores riscos nesses procedimentos são as gestações múltiplas. Fernando Prado conta que evita a todo custo seguir adiante com a fecundação de gêmeos, pois podem trazer problemas de pressão alta, diabetes e hemorragias para as grávidas. "Para as crianças, o risco de prematuridade é grande e, com isso, sequelas podem aparecer, especialmente quando nascem antes do sétimo mês de gravidez", alerta.

Ele conta ainda que os processos começam no período menstrual e duram por volta de 15 dias na inseminação artificial e 20 dias na fertilização in vitro. Veja abaixo outros esclarecimentos do médico.

P: A idade pode atrapalhar o processo de barriga solidária?

R: Muitas mulheres estão adiando a gravidez para idades acima dos 35 ou 40 anos. Isso dificulta muito, porque a qualidade dos óvulos cai rapidamente após esse período da vida. Meu conselho é que se a mulher não pretende ter filhos tão cedo, que congele seus óvulos preferencialmente antes dos 35 anos. Aos 40 anos, as chances de gravidez, mesmo com fertilização in vitro, são de menos de 10% por tentativa.

P: Quais são os cuidados antes e depois da fertilização in vitro e da fertilização intrauterina?

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R: Todos os envolvidos precisam ter uma boa avaliação das suas condições de saúde e fazer exames para saber se não há doenças que coloquem em risco a gravidez. Após os procedimentos, a mulher barriga solidária deve manter um repouso relativo, sem muitos esforços físicos, e fazer reposição hormonal para bloquear a ovulação até o terceiro mês. Isso evita que outra gravidez se sobreponha caso ela tenha relações sexuais nesse período.

Além disso, a placenta produz pouco hormônio depois da fertilização, tornando-se necessário a reposição para evitar o risco de aborto. Passando os três meses, a produção hormonal do órgão normaliza  e a gravidez segue sem problemas.

Barriga de aluguel X Barriga solidária

O quarto filho de Kim Kardashian, o segundo via barriga de aluguel (ou seja, gestação paga), nasceu neste mês de maio, nos Estados Unidos, e a empresária tem recebido comentários elogiosos dos fãs. Apesar da prática ser legalizada em diversos lugares do mundo, ela é mal vista pelas autoridades brasileiras e foi proibida por lei no País.

Aqui, o Conselho Federal de Medicina (CFM) permite a gravidez por substituição - também conhecida como barriga solidária -, em que não se cobra pelo ato. Além disso, a autarquia autoriza, desde 2017, que parentes (incluindo filhas e sobrinhas) e amigos cedam o útero temporariamente.

O médico responsável deve pedir a autorização do Conselho Regional de Medicina (CRM) para que o procedimento siga adiante, exceto caso a pessoa indicada seja parente de até 4º grau.

O advogado Eduardo Veríssimo, que foi o primeiro pai solteiro a ter filhos via barriga solidária no Brasil, recomenda que o casal providencie uma escritura pública de cessão temporária do útero e um termo de conduta e consentimento para direcionar o processo. De acordo com ele, isso evita que haja desistência de ambas as partes.

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No entanto, as regras não barram a ilegalidade. O E+ apurou que muitas mulheres engravidam em troca de R$ 50 mil a R$ 100 mil, em média, negociando em grupos do Facebook e do WhatsApp. A maioria delas é pobre, classe média baixa ou planeja tirar os sonhos do papel. Uma jovem de 26 anos, por exemplo, publicou nas redes sociais que procura um casal que pague pelos seus serviços para conseguir se mudar para a França após a gestação.

Eduardo Veríssimo conta que cabe ao Ministério Público investigar essa conduta, não excluindo as pessoas de denunciar os casos.

Atualmente, o artigo 15 da lei nº 9.434, de 1997, tipifica como crime a compra ou venda de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, com penas de três a oito anos de prisão e multa. Apesar de alguns juristas levarem em conta essa norma para criminalizarem a a comercialização da gravidez, outros alegam que o ato não se enquadra nessa sanção. "Falta legislação penal [para esse assunto]. A barriga de aluguel, ao meu ver, é mais uma questão moral do que jurídica, apesar de entendimentos contrários", interpreta Veríssimo. "Estamos falando de uma cessão temporária do útero, e não da compra e venda", completa.

*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

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