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Conheça Anne, a mulher que interpreta pop e hip-hop em Libras para surdos: ‘Música vai além do som’

Artista faz sucesso no Instagram com vídeos inclusivos e explica que emoções geradas pelas melodias não diminuem pela falta de audição

Por Caio Nascimento
Atualização:
Anne Magalhães já alcançou milhares de pessoas com suas interpretações em Libras. Foto: Imagem cedida por Tito Motta

"Ainda erguendo os meus castelos / Vozes e ecos / Só assim não me perdi / Sonhos infinitos / Vozes e gritos / Pra chamar quem não consegue ouvir”. Imaginar surdos curtindo Pesadão, da Iza, pode parecer distante para muitas pessoas. Isso porque, para além de Beethoven, pensar em deficientes auditivos aproveitando o mundo da música ainda é uma barreira para ouvintes. Mas não para a produtora visual e intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras) Anne Magalhães, de 28 anos.

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Acostumada a ir a festas com seu amigo e poeta surdo Bruno Ramos, a mulher começou a interpretar músicas de pop e hip-hop para ele, até perceber que a iniciativa poderia impactar mais vidas. Os dois pesquisavam rima visual e expressões corporais como forma de levar canções e poesias a esse público, o que motivou a jovem a fazer performances no Instagram para a comunidade surda

Em abril, ela interpretou em Libras o sucesso This Is America, de Childish Gambino (Donald Glover), e atingiu mais de 13 mil visualizações na rede social. E não é para menos: a oscilação das ondas sonoras é mais perceptível para quem tem a audição comprometida, o que torna esse tipo de conteúdo acessível e de utilidade pública. Assista:

Veja abaixo a interpretação de Bluesman, de Baco Exu do Blues, com mais de 60 mil acessos:

“Muitas pessoas surdas colocam a mão por onde sai o som do celular ou computador para sentir a vibração”, explica Anne. “A língua de sinais precisa de expressão facial e corporal para fazer sentido. Na poesia, isso fica muito nítido e na música é ainda mais forte para que se consiga mostrar que ela está tocando”, completa. 

Apesar de ter ficado conhecida pelos vídeos de pop e hip-hop, a jovem diz que não escolhe as canções por gênero, mas pelo apelo visual - critério importante para quem não escuta. Em setembro de 2018, por exemplo, ela gravou o samba Eu e Você Sempre, de Jorge Aragão:

‘Música vai além do som’

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A artista já recebeu pedidos de deficientes auditivos fãs de Pabllo Vittar que, apesar de não a ouvirem, admiram a personalidade e as cores variadas usadas pela drag queen. “Falam muito dela, porque é uma artista com uma expressão visual e corporal muito forte. Os seguidores dizem que querem saber o que ela está falando quando a assistem”, conta.

Pessoas que estão perdendo a audição por problemas de saúde ou que escutam pouco também acompanham a intérprete pelo Instagram com diferentes interesses. Alguns querem aproveitar a música e outros apenas se interessam pelas performances da produtora visual. Em uma de suas publicações, uma mulher com a deficiência se emocionou com a iniciativa. 

“Você me faz chorar. A música ultrapassa barreiras e promove inclusão. Uma das coisas boas que as redes sociais fizeram foi nos presentear com pessoas assim, que nos acrescentam. Receba nosso carinho [da comunidade surda] e gratidão”, escreveu. “É maravilhoso sentir a música 'sem música', por meio de suas expressões e ritmos. Muito bom”, elogiou outra seguidora.

Abaixo, ela interpreta Ain’t Got No, I Got a Life, de Nina Simone:

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Anne Magalhães diz que nem tudo em seus vídeos depende da língua dos sinais para gerar emoções. Mexer as pernas e os quadris, por exemplo, é uma forma de demonstrar ritmo e ajudar na compreensão da mensagem. “Música vai além do som. A maneira como eu interpreto é muito próxima da criação de poesia para surdos. Ou seja, eu me distancio dos sinais formais de vez em quando para criar cenas visuais”, explica.

'Tradução' de Libras é errado, explica Anne

A artista já divulgou outras sete músicas recentemente, dentre elas A Carne, de Elza Soares, e Placo, de Rincon Sapiência. De acordo com ela, alguns trechos têm interpretações abstratas, já que a língua de sinais possui expressões únicas como qualquer outro idioma. “Tem coisas nas letras que são subjetivas. Por mais que consigamos chegar na visão do artista, muito parte das nossas referências. Então a música nunca vai ficar literalmente ‘traduzida’. Quando vejo que fica restrito, eu trago expressões próprias da comunidade surda”, diz. 

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Por conta disso, a produtora afirma que é errado dizer que se pode 'traduzir' o português para Libras ou vice-versa. O termo correto é "interpretar". No vídeo da música Pesadão, por exemplo, há uma parte em que a cantora fala que está erguendo castelos, o que pode dar a entender que ela está literalmente em um canteiro de obras construindo. Para evitar essa ambiguidade, Anne performa com o corpo, interpretando que está se construindo enquanto ser humano. Assista:

‘A inclusão de surdos avança cada vez mais’  

Anne Magalhães atua com Libras há oito anos e recorda que antigamente era comum os surdos contratarem seus serviços para conseguir acessar shows, concertos, teatros e outras atividades culturais. Entretanto, ela avalia que isso mudou nos últimos tempos e já existem lugares que deixam um intérprete no palco, independentemente de ter ou não pessoas com deficiência auditiva. 

A própria Anne já trabalhou com Criolo, Karol Conká, Arnaldo Antunes e MC Carol na Virada Cultural de São Paulo. Além disso, a Secretaria Municipal de Pessoa com Deficiência (SMPED) da cidade oferece, desde 2016, vídeos em Libras dos 14 sambas-enredo das escolas do Grupo Especial. Intitulado Samba com as Mãos, o projeto conta com diversos intérpretes. 

Veja abaixo a interpretação do mas recente samba-enredo da Mancha Verde, campeã paulista do carnaval 2019. A música homenageia a princesa africana Aqualtune, avó de Zumbi dos Palmares, e sua luta pelos direitos dos negros e mulheres:

Ciente de que ainda há uma longa caminhada pela frente para melhorar a inclusão de surdos na sociedade, Anne Magalhães afirma que continuará gravando interpretações em Libras para postar no Instagram. 

Por enquanto, ela prefere não pensar em ideias mais ambiciosas, pois, em quase uma década de experiência, ela percebeu que projetos assim demandam tempo para se aprimorar. “Essa iniciativa tem muito a ver com pesquisa. Eu compartilho com outros intérpretes meus vídeos e isso traz, para nós da área, mais referências de como aumentar a inclusão e, assim, fazer um trabalho melhor”.

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*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais