'BBB 21' e Psicofobia: preconceito sobre saúde mental fica em evidência entre participantes

'Louca do rolê', 'transtorno' e 'surtos' são termos frequentemente usados; entenda como argumento pode ser usado para manipular pessoas

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Por Camila Tuchlinski
Atualização:
Participantes do 'Big Brother Brasil 21' Foto: TV Globo

O Big Brother Brasil 21 pode ser uma das edições que mais rendeu audiência na história do programa para a TV Globo. Isso significa que milhões de telespectadores acompanharam os momentos de descontração, competição e discórdias dentro da casa. Os assuntos que são abordados pelos participantes no reality acabam sendo discutidos amplamente na internet.  Diante disso, falar algo que traga desinformação pode reforçar estigmas perversos, como a Psicofobia, que é o preconceito contra quem tem problemas relacionados à saúde mental. Foram comuns os momentos em que as palavras "surtos", "distúrbio", "transtornada" e "lelé da cuca" foram ditas no programa.  Em diversos momentos, seja em festas ou até mesmo em bate-boca, Karol Conká dizia, por exemplo, "adoro ser a louca do rolê" ou "estão querendo me pintar como a louca do rolê". Depois que saiu da casa, em entrevista com a apresentadora Ana Maria Braga, a rapper fez uma análise sobre a personalidade dela: "Sou pirada, muito intensa e transparente". Os termos "piração" e "maluca" são frequentes nas falas dos participantes. Toda semana, o líder da casa grava um podcast com os colegas. Quando Karol foi líder, o programa foi batizado por ela de 'Piracast'. "Controlar minha 'pira' é muito complicado. Preciso tratar minha 'pira' e a 'pira' das pessoas", disse Juliette. Lumena admitiu: "Eu já pirei 'grandão'!". Rodolfo fez uma análise do reality: "Estamos aqui tentando dominar o nosso cérebro contra a piração de todos". E Gilberto, que se irritou algumas vezes no BBB, brincou: "Eu falei 'não vou pirar'. E dez minutos depois eu estava pirando".  "O Big Brother é um microcosmo da nossa sociedade. Lá podemos ver com uma lupa todas as contradições humanas e como as pessoas praticam pouco o que pregam. O uso imprudente de termos que podem sugerir doenças mentais com viés negativo reforça o preconceito e mantém a crença de que se alguém tem algum transtorno, deve ser visto com cuidado ou reservas", avalia o psiquiatra Rodrigo de Almeida Ramos.  No Twitter, os internautas reagiram aos termos que envolvem saúde mental e pareciam não se dar conta da Psicofobia implícita.

Mas teve gente que percebeu que os termos associados à saúde mental eram frequentes. "Espero que com a Karol fora da casa a gente pare de usar diagnóstico e transtornos psicológicos como desculpa para comportamento mau caráter e não associe mais alguém "ir se tratar"com uma ofensa ou castigo. A estigmatização das doenças começa por aí", escreveu uma internauta.

A palavra "louco", por si só, já é um rótulo, na medida em que se refere, de forma leiga, às pessoas que têm alguma doença que as fazem romper com a realidade. "Está associada à discriminação e ao menosprezo de quem está doente. Frases como “louco não se pode contrariar” ou “não liga, pois ele é louco” trata com descaso quem tem a mente não funcionando de forma saudável", afirma Rodrigo de Almeida Ramos.  Para a atriz Flávia Garrafa, que também é psicóloga, a saúde mental sempre foi alvo de preconceito. "Se formos pensar nos manicômios ou na obra de Machado de Assis - O Alienista, afastava-se da sociedade quem era tido como “louco”. Hoje, já pós movimento antimanicomial, o que afasta a pessoa é o próprio diagnóstico dado a ela. Ele rotula e segrega. É preciso ter muito cuidado com o "título", com a definição da doença e com o uso que se faz dela", pondera.  Há anos, Flávia Garrafa comanda a peça 'Fale Mais sobre Isso'. A história discute, com muito humor, a capacidade e o desejo de mudança das pessoas que procuram a psicoterapia. Em cena, uma psicóloga conhece as angústias, dúvidas, questionamento e desconforto de quatro pacientes. 

A atriz e psicóloga Flávia Garrafa, na peça 'Fale Mais Sobre Isso' Foto: Lila Batista

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A atriz ressalta que a internet trouxe uma facilidade de acesso à informação, que é totalmente diferente de formação, e fazer um diagnóstico é tarefa de um profissional capacitado: "O que eu acho que acaba acontecendo é que, na urgência de entender ou até justificar um comportamento, rotula-se uma pessoa com um tipo de doença mental, mas sem estofo e acolhimento para lidar com as consequências sociais que esse rótulo pode trazer. Então, a saúde mental ainda é muito temida por uma carga histórica e pela falta de informação". A maioria dos transtornos ocorre por alguma disfuncionalidade do corpo como qualquer outra doença, a exemplo da diabete. A diferença é que os distúrbios mentais afetam o comportamento social, estigmatizando a doença.

Participantes do 'BBB 21' usam termos médicos, como TOC, para justificar comportamentos

Além dos casos citados anteriormente na reportagem, houve quem usasse termo médico para justificar o próprio comportamento ou o colega de reality. O Fiuk, por exemplo, demonstra para os companheiros que é uma pessoa que valoriza a organização e uma certa ordem das coisas. Não demorou muito para alguém na casa fazer um 'diagnóstico': "Fiuk tem TOC".

TOC é a sigla para Transtorno Obsessivo Compulsivo. A pessoa que tem essa patologia sofre com pensamentos obsessivos e comportamentos compulsivos incontroláveis, como revisar diversas vezes portas, janelas, gás ou o ferro de passar roupas antes de sair de casa ou dormir. Mas justiça seja feita: o uso indevido de termos psiquiátricos é uma prática de longa data do senso comum. Por vezes, algumas pessoas imaginam que o colega de trabalho é 'bipolar', só porque chegou de mau humor em um dia qualquer. Conheça mais sobre o Transtorno Bipolar aqui. Na visão de Flávia Garrafa, mais perigoso do que segregar, é usar diagnósticos para justificar comportamentos. "Novamente, uma ferramenta que supostamente seria usada para ajudar a evoluir e tirar sofrimento, pode ser usada para justificar descontroles. No caso do Big Brother, acho que tem acontecido as duas coisas, o que é preocupante, porque perde-sea noção de indivíduos com suas responsabilidades, habilidades e defeitos, para colocarmos toda a explicação num título, num diagnóstico, em uma doença", afirma. O psiquiatra Rodrigo de Almeida Ramos sintetiza: "Programas como o Big Brother proporcionam a queda da máscara que os participantes usam para viver em sociedade e fazem aflorar todo preconceito que eles tentam manter privados do público. E essa edição demonstra: a sociedade ainda tem muito preconceito com a saúde mental".

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A 'loucura' usada como forma de manipulação

A pessoa que escuta que "é louca", em casos mais extremos ou em que ela não está fortalecida emocionalmente, pode realmente acreditar que está doente ou imaginando coisas.

Um exemplo clássico é quando o companheiro é pego em traição pela cônjuge e diz que "ela está louca", "vendo coisas". Outra situação não tão rara, infelizmente, é quando jovens dizem que os avós estão ficando "esclerosados" ou "dementes" para descredibilizar suas opiniões e escolhas. "Há casos de casais em separação em que um dos cônjuges, por fazer tratamento psiquiátrico, é ameaçado pelo outro de perder a guarda do filho. Há ainda pessoas que, para conseguir alguma vantagem, ameaçam doentes mentais de internação hospitalar involuntária num processo de chantagem. Mas ninguém, a não ser o médico com autorização do Ministério Público, tem autorização para internar alguém contra a vontade", explica Rodrigo de Almeida Ramos. O especialista destaca que esses casos só prosperam porque a Psicofobia atinge a sociedade como um todo. Será que algum dia as pessoas deixarão de usar termos psiquiátricos de maneira preconceituosa? E como fazer para acabar com o problema?  O psiquiatra Rodrigo de Almeida Ramos relata que a Psicofobia ocorre inclusive entre os médicos: "Como a psiquiatria demorou para estabelecer e comprovar empiricamente hipóteses científicas, ainda é tida com muita ressalva na classe médica. E isso é visto em profissionais que hesitam em encaminhar seus pacientes para o psiquiatra com receio de ofendê-los. É preciso que eles estejam preparados para dialogar com pacientes psicofóbicos. Preconceito se resolve conversando sobre ele".  A atriz e psicóloga Flávia Garrafa conclui: "Na minha opinião, a primeira coisa que deve ser feita é tirar a “culpa” do indivíduo que sofre de alguma doença mental. Alguém tem culpa por ter asma ou reumatismo? Então, por que responsabilizar um indivíduo que tem uma patologia mental? Para que isso seja feito com sucesso, é preciso entender como funcionam essas doenças. Sem entendimento, apenas com julgamentos, não saímos do lugar".

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