Tesouro em Saint Germain

Da rua, pouco se vê da Maison de Verre, um exemplo de modernismo padrão em um dos bairros mais famosos de Paris

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Por Maria Ignez Barbosa
Atualização:

Erguida em Paris no fim da década de 20, a Maison de Verre, o mais importante projeto arquitetônico de Pierre Chareau, só foi construído graças ao entusiasmo e a persistência do casal Annie e Jean Dalsace, ele médico, ela uma apaixonada por tudo o que fosse contemporâneo, da forma reta e arrojada ao material menos usual. A ideia de Chareau, amigo do casal de longa data, e mais conhecido como designer de móveis, era criar a casa modernista padrão, servida por soluções tecnológicas avançadas e racionais, de execução rápida e econômica.

 

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Traindo, de certo modo, esse conceito vanguardista, a Maison de Verre demorou quatro anos para ser concluída e custou bem mais que o pretendido. Seu projeto, na verdade um quadro de intenções desenvolvido no desenrolar da obra, que estipulava estrutura metálica e paredes de tijolos de vidro (na contramão das tradicionais de madeira, barro e cimento armado), fez dessa casa um dos mais bem-sucedidos exemplos do ideal sonhado pelos arquitetos modernistas das primeiras décadas do século 20. Uma caixa translúcida plantada no fundo de um pátio do século 18, que, com pilotis, se acopla e sustenta o que sobrou de uma edificação antiga, a Maison de Verre segue servindo de moradia para seu mais novo dono, o executivo americano Robert Rubin, que há menos de cinco anos a adquiriu de Dominique Vellay, neta do casal Dalsace.

 

Foi em 1927, bem no coração de Saint-Germain-de-Prés, bairro da boêmia e dos intelectuais, que Annie e Jean encontraram esse hotel particular do século 18, destituído de beleza ou de maior interesse arquitetônico, mas com terreno suficiente para uma construção que pudesse também abrigar, sem conflito, o consultório do dr. Dalsace. Sendo impossível demolir inteiramente o prédio antigo, pois o inquilino do segundo andar se recusava a deixar o local, o jeito foi rodeá-lo com novos espaços onde entrasse muita luz e paredes que escondessem o que se passava no interior, garantindo a privacidade dos moradores.

 

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Mente e alma. Pouco da casa se vê da rua, muito menos que dispõe de um jardim do outro lado do pátio. Na fachada, numa placa de metal onde se lê Docteur, Visites e Service, três campainhas emitem sons distintos. Mais que tudo, impressiona o hall central, com suas 11 colunas laranjas e pretas a estruturar a casa inteira, obra e graça do serralheiro Louis Dalbek, que, chamado por Chareau para com ele mergulhar na aventura, dedicou mente e alma à engenharia do projeto. As janelas são altas, basculantes, e movidas por manivela, lembrando as de navio. Em seu interior, painéis de metal perfurado ou de vidro ninho de abelha dividem os ambientes. Os armários embutidos, quase invisíveis na sua simplicidade, têm portas laqueadas de preto. Nos banheiros, mosaico branco. O linóleo de borracha clara forra quase todo o chão. Na sala de jantar, o assoalho é feito de pequenos tacos de madeira cubana alinhados em linha reta e bem encerados.

 

Na imponente biblioteca, uma escada de metal corre em um trilho na parte superior. Livros, muitos livros, outra paixão de Annie Dalsace - que sempre apoiou edições de artistas com capas especiais, e recebia em casa figuras do calibre de Max Ernst, Jacques Lipchitz e Juan Miró -, explicam as enormes estantes de metal que ocupam toda uma parede. Escadas quase flutuantes unem os andares sem delimitá-los. E portas de alumínio e cabides aparentes no mesmo material em forma de bigode acentuam o clima high tech. No consultório, com salas de espera, de atendimento e também de cirurgia, uma cabine telefônica de madeira permitia que o dr. Dalsace falasse sem ser ouvido.

 

A ideia inicial de Chareau era que os tijolos de vidro, surgidos na França no século 19, ideais para permitir a entrada da luz, pudessem funcionar como pele protetora da construção. Apesar de muito insistir, o arquiteto não obteve do responsável pela fabricante alemã, a Saint- Gobain, a garantia de que os tijolos Nevada, de 20 cm x 20 cm e 4 cm de espessura, poderiam ser usados dessa forma. Com a ajuda do artesão serralheiro Dalbek e do construtor Bernard Bijvoet, foi inventada uma espécie de grade de metal que, ao agrupar os tijolos em blocos de 90 cm x 90 cm, evitaria que fossem sobrecarregados pelo excesso de peso.

 

Foram quatro anos, de 1928 a 1932, de incansável e rica pesquisa sobre o comportamento do aço, do alumínio, como esconder chassis, tipos de solda, parafusos, como sistematizar a eletricidade, a calefação e a telefonia em espaço tão fora do comum. A ossatura metálica, no lugar das velhas vigas de madeira ou de concreto, atenderiam ao ideal de se criar espaços internos mais livres do que aqueles das casas tradicionais. Chareau, que morreu nos Estados Unidos em 1954, fazia questão de afirmar que não se tratava de submissão à técnica, mas de emprestar dela dados materiais e humanos positivos. Segundo ele, nem a Maison de Verre nem qualquer de seus outros três únicos projetos de arquitetura, dois deles realizados nos Estados Unidos, poderiam ser considerados "máquinas de morar", termo tão usado e tão ao gosto dos críticos de então.

 

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Delicadeza. Quando era pequena e visitava a avó, Dominique Vellay não tinha ideia de estar frequentando uma casa que viria a ser tão cultuada, transformada em ícone e em fonte de inspiração para arquitetos como Richard Rogers, que a descobriu em 1966, e depois ficou famoso pelo prédio do Lloyds Bank, em Londres, e o do Museu Pompidou, em Paris. Como não ver nesses trabalhos contemporâneos e tão impactantes em matéria de linguagem arquitetônica as pegadas de Chareau e de sua Maison de Verre? Para a menina Dominique, a casa lembrava um barco e suas paredes translúcidas passavam sensação de delicadeza e fragilidade. Na introdução do belo livro La Maison de Verre, da editora Actes Sud, Dominique Vellay lembra os momentos passados em companhia da avó no salão azul, assim chamado por causa do tapete cor de anil, onde eram organizados pequenos saraus. Decorada com móveis assinados por Pierre Chareau, que hoje são preciosidades - biombos, sofás e poltronas sempre cobertos com tapeçarias do famoso Jean Lurçat, amigo de infância do dr. Dalsace e autor do retrato de sua mulher -, a casa é sem dúvida uma lição de que a boa arquitetura não existe sem um bom cliente e a total harmonia entre exterior e interior, entre o que veste a casa e o que a circunda. Na Maison de Verre, um segredo bem guardado, as visitas guiadas são reservadas aos amigos da Associação Museu do Vidro. O endereço é 31 Rue St. Guillaume, em Paris 7 e o telefone para contato 33-1-45449921. Vale tentar.

( http://www.mariaignezbarbosa.com/ )

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