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Tempos de luxo e prazer

A Sicília dos gatopardos esbanjava refinamento. Os tempos são outros, mas a beleza continua lá

Por Maria Ignez Barbosa
Atualização:

Na Sicília, ilha civilizada pelos gregos, submetida aos romanos, invadida pelos bárbaros, conquistada pelos árabes, ocupada pelos normandos, concedida aos espanhóis, depois aos Bourbons, de Nápoles, até vir a fazer parte do reino da Itália em 1860, a vida era bela e os costumes peculiares, o que muito encantava e surpreendia os estrangeiros que por ali passavam. Em 1777, o Conde de Borch, depois de sua primeira visita à ilha, reportou sobre o luxo desmedido, a magnificência jamais vista, o gosto refinado e o esplendor da vida desses "gatopardos", que podiam ser, em uma mesma pessoa, príncipe, duque e barão, como foi o caso de Giuseppe Tomasi - Duque de Palma, Príncipe de Lampedusa e Barão de Montechiaro et della Torreta, o autor do livro que inspirou o belo filme de Luchino Visconti, O Leopardo. Era traço da aristocracia local se referir aos palácios onde moravam, com bustos e as armas das famílias dominando os muros, fachadas e frontões, como apenas à sua casa. Referir-se a eles como palazzo, que em italiano vale para qualquer edifício de grandes dimensões, deixavam para as classes mais baixas - os contadores, advogados, fornecedores e domésticos. Cada morada tinha também seus códigos. De acordo com o número de batidas à porta, se saberia se a visita que se anunciava era a de uma princesa ou duquesa, ou se elas poderiam estar chegando acompanhadas de uma amiga. O porteiro, sempre a postos, não raro tocaria a campainha até dez vezes. A quantidade de empregados também impressionava. Eram valetes, lacaios, mucamas, governantas, cocheiros e jardineiros. Havia de se cuidar dos magníficos jardins, vestir crianças, damas e cavalheiros, servir em bandejas o mais singelo copo d?água e organizar as grandes festas, bailes e recepções de casamento, condolências ou batizados com que as famílias se entretinham. Basta dizer que, em 1790, o livro de ouro da ilha registrava 228 famílias nobres, com 58 príncipes, 27 duques, 37 marqueses, 26 condes, 1 visconde e 79 barões. O gatopardo acordava tarde e muitas vezes acompanhava a mulher à missa. O dia nunca começava para ele antes do meio-dia, a não ser que houvesse um evento excepcional, como enterro ou celebração religiosa. O almoço não seria antes das 3. E, após a sesta, a cassariata, o passeio ao longo da Vittorio Emanuelle, a rua central e mais larga de Palermo. O ponto de encontro antes da noite seria no Circolo Bellini, o chamado Cassino dos Nobres. Conversar política podia ser perigoso. O conselho era não apontar o dedo, pois esse poderia ser mordido. Todos tinham casa de campo ou de villegiatura. Gatopardos e gatopardas eram fortemente religiosos, a ponto de se falar de uma religião siciliana. Era uma fé selvagem, ardente, e onipresente a desses nobres insulares - eles acreditavam que Deus e a Virgem Maria tinham de pensar em todos e que o santo seria de cada um. Cultuavam relíquias e a confissão podia ser em domicílio. Havia capelas nos palácios e os santos podiam ser dispensados caso não estivessem atendendo aos desejos solicitados. Foi o caso de Santa Cristina, a patrona oficial de Palermo, substituída por uma aristocrata local, Santa Rosália, morta em 1166 e enterrada na gruta Pellegrino, hoje local de peregrinação. O gatopardo era festeiro e o prazer da hospitalidade levava ao auge esse sentido da festa e do constante festejar que talvez possa ser explicado pela origem oriental dos sicilianos. Receber o visitante estrangeiro era encargo disputado. Entre 1881 e 1882, Richard Wagner, a convite do Príncipe Gangi, passou alguns meses na ilha, com a mulher Cosima, que se encantou com a "hospitalidade extraordinariamente gentil e natural dos insulares". Durante o dia, no interior dos palácios, havia uma certa obscuridade, mas, à noite, as luminárias de vidro de Murano, nos salões íntimos ou grandiosos, severos ou barrocos, exporiam e fariam imperar as chinoiseries do século 18, as pinturas policromadas, os estucos, as paredes forradas com brocados de seda, os retratos de ascendentes e familiares, sempre entre pinturas de ninfas nuas, molduras de tartaruga, vasos de Sèvres, coleções de leques, cerâmica capodimonte, móveis barrocos, tapissados e franjados, fartas cortinas, tapetes Aubusson, pisos de cerâmica pintada, escadarias de mármore, portas de madeira policromada, espelhos venezianos e objetos em pedra de lavra. Em muitas das casas, os salões maiores com paredes esmeradamente decoradas eram mantidos sem móveis à espera de serem mobiliados de acordo com a exigência do evento. Palazzos que encantam A influência inglesa era bem-vinda e a anglomania evidente, embora ela nunca tenha atingido os banheiros das casas sicilianas, que se mantinham apenas funcionais, ao contrário do que acontecia na Inglaterra onde eram decorados como pequenas salas de visitas nas english country houses. Na Sicília, os convidados não passariam da sala de visitas. Na Inglaterra, como de hábito, depois dos jantares as mulheres eram convidadas para o refinado quarto da dona da casa e usariam o grande e confortável banheiro. Tomar chá passou a ser, como na Inglaterra, um must. As famílias tinham nurses para os recém-nascidos. O steak & kidney pie e o Yorkshire pudding foram introduzidos no cardápio dos ilhéus aristocratas e a mince pie passou a se chamar em italiano mezzosposo, (ou seja, literalmente, "meio marido"). À mesa cotidiana, no entanto, o estilo era o do reino das duas Sicílias. Entre a prataria maciça, os cristais Saint-Louis ou Baccarat e os guardanapos dobrados como origamis, o príncipe dono da casa servia ele mesmo a sopa aos familiares. Em dias de festa, as longas mesas de banquete seriam decoradas com figuras de porcelana de Meissen, serviços de vidro de Murano, enormes centros de mesa como o da grande sala de jantar do Palácio Gangi, em bronze e cristal e em estilo império, além de flores e velas em profusão, e atendidas por mordomos de libré. Haveria sempre nougats, frutas cristalizadas e os famosos doces da pâtisserie siciliana, como as minni di vergine, recheadas com chocolate e confeitos de frutas. O café seria servido depois, nos terraços adjacentes aos salões. A esse fausto atribui-se a ruína de muitas famílias. A abolição do feudalismo, no entanto, não viria a acabar com os títulos nobiliárquicos nem tampouco acirrar ódios e rancores. A nobreza manteve a gratidão do Estado por seus antigos méritos e a comunidade era incentivada a preservar o prestígio moral dos aristocratas. Continuam de pé, portanto, habitados, embelezando a paisagem e encantando os turistas, os Palazzos Malvagna, Lanza Tomasi, Gangi e Alliata di Pietratagliata em Palermo; o Biscari em Catane; o Beneventano del Bosco em Siracusa e tantos outros. E com mais pé na terra e menos extravagâncias, mas ainda no livro de ouro da nobreza siciliana, os Príncipes, Duques e Marqueses da Patagônia, os Fulco di Verdura, os Lampesusa, os Valguarnera, os Paternó Castello di Spedalotto, os Santostefano della Cerda e outros tantos descendentes desse mundo de luxo, beleza e devoção ao prazer.

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