Quilt sai do baú para encantar

Mostra em Londres traz de volta o trabalho de patchwork que atravessou séculos e hoje flerta com novos artistas

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Por Maria Ignez Barbosa
Atualização:

Se essa atividade manual feita sobretudo por mulheres, há milênios, pode ser vista como arte ou deveria se restringir ao universo das artes puramente decorativas é uma questão que o museu Victoria & Albert, em Londres, decidiu trazer à tona. Com mais de 8 mil ingressos vendidos antes da abertura, em 20 de março último, e hotéis lotados com grupos de adeptos da prática do patchwork, a exposição Quilts: 1700-2010 só faz encantar e seduzir.

 

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Ali, nesta que é a mais abrangente mostra organizada sobre o tema, a tradicional colcha feita com retalhos de pano, sobras de vestidos de noivas, velhos lençóis ou roupas fora de uso, unidos por pespontos em minúsculas formas geométricas, deixa o baú, sobe à parede e flerta com a geração de jovens artistas ingleses.

 

Logo na entrada da exposição, solta e só, uma cama de dossel com trabalhos de séculos passados pendendo das hastes de madeira e cobrindo o colchão. São colchas feitas de pedaços mínimos de tecido que misturam vermelho, marrom, verde e azul. A luz é baixa, o som intriga, as paredes são rosa-bebê e o clima é de quarto. Intimidade, segredo e conforto.

 

Um passatempo que foi moda no século 18, praticado em toda a Europa, mas sobretudo na Inglaterra, e que servia às mulheres para expressar não apenas a criatividade, mas também para despejar angústias e preocupações cotidianas. Assim, em muitos dos mais de 65 quilts ali expostos, na vertical ou na horizontal, sobre camas ou tal qual bandeiras desfraldadas, muitas histórias tristes e alegres são contadas, eventos documentados, datas glorificadas e figuras famosas têm suas vidas celebradas. Muitos deles são apresentados junto a cadernos de notas, diários e retratos dos autores ou parentes.

 

Há os que mostram cenas bíblicas, outros imagens religiosas e muitos falam de amor e patriotismo. Um deles, por exemplo, representa o rei Jorge III passando em revista as tropas que cantavam o hino nacional no dia de seu aniversário em 1799. É composto de 41 cenas e, numa delas, a autora se faz presente. Ao bordar a própria imagem, ela se coloca como narradora, observadora e cronista dessa história.

 

Eventos políticos, vida familiar, nascimentos e mortes são contados e retratados nesses quilts. Num deles – alguns chegam a juntar mais de 6.500 recortes –, datado de 1780-1830 e onde estão representadas as fábulas de Esopo, fica clara a presença de mãos diferentes, uma delicada, outra mais afoita. Figuras de animais são uma constante e é interessante ver, em uma peça do século 19, uma estampa de oncinha.

 

Em defesa da rainha. Somos levados a confabular, fantasiar e imaginar afetos, humores e rancores de desconhecidos. Na colcha onde se lê "Sua Mais Graciosa Majestade Carolina, Rainha da Inglaterra", está evidente um protesto bem feminino contra o futuro rei Jorge IV que, ao se divorciar da mulher, a impediu que se tornasse rainha. À época e à propósito, a escritora inglesa Jane Austen escreveu: "Pobre mulher, estarei com ela o quanto puder, pois ela é Mulher e eu odeio o seu Marido".

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Histórias de ontem e de hoje, pois ali há trabalhos também de artistas plásticos contemporâneos, como o de Tracey Emin, To Meet My Past, que evoca o quilt como repositório de memórias pessoais e coletivas. Outro é o do polêmico Grayson Perry, vencedor do Turner Prize, que, com a obra Direito à Vida, de 1993, onde bordou fetos de renda cor-de-rosa sobre fundo de veludo vermelho, branco e preto, faz uma pregação contra o aborto. Visível a diferença entre os quilts antigos e os modernos. Nos primeiros, nenhuma pretensão quanto a se estar fazendo arte. Nos mais recentes, total certeza. Há neles traços de impaciência, pedaços maiores de tecido e costuras falsamente ingênuas. E sobretudo deixam de lado a função tradicional do patchwork, que, sob forma de colcha, destinava-se a prover calor e conforto.

 

Animada com o anunciado e já evidente sucesso da mostra, a curadora Sue Pritchard, que passou seis anos dedicada à sua organização, acredita piamente num revival da atividade, e deixa claro que não se trata de um show para vovós ou clubes de mulheres tecedeiras. Fazendo referencia à crise econômica na Inglaterra, ela sugere que todos em seu país deveriam estar se dedicando a fazer colchas para aquecer o inverno e que as novas gerações poderiam se armar de agulhas e usar o patchwork contra o estresse, para a meditação e uma pausa no BlackBerry. Nesse sentido, o museu, além de lançar dois livros sobre o tema, um histórico e outro ensinando o bê-a-bá, Patchwork for Beginners (de autoria da curadora), e de ter organizado um programa de palestras, vende em sua loja o material necessário para quem se animar a botar a mão na massa. Aí se inclui uma linha de tecidos com 18 estampas baseadas nos trabalhos ali expostos e editadas pela tradicional Liberty’s, loja conhecida por seus prints de estampas pequeninas.

 

A mostra, que estará aberta ao público até o dia 4 de julho, embora apresente trabalhos emprestados de outros museus e de artistas contemporâneos especialmente convidados a participar, serviu de oportunidade para o próprio Victoria & Albert tirar do baú, sacudir a poeira, restaurar e redimensionar o valor de seu magnífico acervo de quilts.

 

O patchwork já foi muito praticado por soldados convalescentes de ferimentos de guerra, tanto que um dos museus a ceder obras foi o Imperial War Museum. Da Galeria Nacional da Austrália, veio o Rajah, um quilt feito em 1841 por presas enquanto eram transportadas no navio HMS Rajah para o exílio na Tasmânia. O material usado por elas fora doado por uma instituição feminina voltada à recuperação social. Também magníficos são o Bishops Court Quilt, de 1690/1700, o Chapman, de 1829, que atrás da imagem de um casamento feliz tem um subtexto macabro, e o Wandsworth, feito por detentos na prisão de mesmo nome.

 

Arte ou não, artesanato ou terapia, preconceitos à parte, difícil dissociar a prática secular do patchwork do universo feminino, maternal e de aconchego. Quilts: 1700-2010 tem certamente tudo a ver com o Victoria & Albert que a acolheu e cuja vocação são as artes decorativas, o design e a moda.

 

( www.mariaignezbarbosa.com )

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