Paixão pela madeira

Arquiteto, designer, paisagista... Nesta edição, uma apresentação da obra múltipla de Zanine Caldas, que deve ganhar um livro e uma exposição em 2009

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Por Roberto Abolafio Jr.
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Ele foi paisagista, maquetista, designer, arquiteto - e dos bons. Dizer que José Zanine Caldas tem lugar guardado na história do móvel e da arquitetura moderna no Brasil é tão importante quanto contar que era filho de uma família humilde, seu pai era parteiro, nasceu em 25 de abril de 1919 em Belmonte, no sul da Bahia, e cursou só até a quarta série. Era autodidata esse baiano arretado, mistura de índios, negros e italianos. Tinha duas grandes paixões: a madeira e as mulheres. Casou-se pelo menos quatro vezes e teve seis filhos, três dos quais seguiram os passos do pai. Tanto que nas páginas deste especial do Casa& vai-se encontrar uma reportagem sobre como o DNA falou alto na carreira deles. Ainda será possível conhecer um pouco mais do mobiliário desenvolvido por Zanine e passear por uma casa em Brasília, pertencente à família Bettiol, em que o arquiteto teve total liberdade criativa, além de outra em Joatinga, no Rio de Janeiro, que ele construiu para si mesmo. Veja também: De olho no mar Especial para amigos Talento no DNA "Sempre fui observador", costumava dizer o artista, que tinha um quê de nômade e cuja biografia é cheia de idas e vindas, por vezes difíceis de sintetizar. Viveu em diferentes pontos do País e viajou bastante. "Quando não tinha muito dinheiro, ele ia para o exterior, comprava artesanato nas cidades que visitava e vendia as peças na volta para financiar a próxima viagem", diverte-se Zanini de Zanine Caldas, o filho caçula. Observar, intuir, realizar. Pode-se dizer que esses verbos nortearam a vida de Zanine Caldas. Ainda pequeno, ele pôde constatar, às margens do Jequitinhonha, como se faziam de canoas a casas só com os materiais da região. Aos 15 anos, já em Pitangueiras, interior de São Paulo, notava o trabalho dos imigrantes italianos, que construíam de tudo um pouco. Aos 20, abriu um ateliê de maquetes no Rio de Janeiro. Foi o ponto de partida para o reconhecimento de seu trabalho por arquitetos modernos cariocas, como Oscar Niemeyer, e depois paulistas, caso de Oswaldo Arthur Bratke. O urbanista Lucio Costa dizia que ele, ao produzir as maquetes, fazia pequenas correções nos projetos. Todas procedentes. "Esse contato foi fundamental para suas futuras construções, que mostram uma espécie de interseção da arquitetura moderna e vernacular", considera o arquiteto e pesquisador Luís Antônio Magnani, que busca financiamento pela Lei Rouanet para um projeto preservador da memória do autor. Afinal, Zanine completaria 90 anos em 2009. Namoradeiras feitas artesanalmente por Zanine Caldas. Foto: Sérgio Dutti/AE "Móveis-denúncia" Antes de se tornar arquiteto, ele já tinha incursionado pelo design de móveis, quando, aos 29 anos, esteve à frente da Móveis Artísticos Z, em São José dos Campos - iniciativa pioneira na industrialização de móveis no Brasil. Foi nessa época, no final dos anos 40, que o fotógrafo Hans Gunter Flieg conheceu o designer ao registrar as imagens dos móveis produzidos pela fábrica. "Zanine era excêntrico, genial", lembra. "Estava longe da convenção." Por volta de 1968, ao lado do artista plástico Franz Krajcberg, fez ainda "móveis-denúncia" com troncos de árvores derrubadas na região de Nova Viçosa, na Bahia. Foi do móvel industrializado ao artesanal. Como era coordenador do laboratório de maquetes da FAU nos anos 50, recebeu um convite para a mesma função na recém-inaugurada Universidade de Brasília. O Zanine professor tinha um ideário socialista - logo foi afastado da universidade com o golpe de 1964. Vera Brant, amiga de 40 anos do profissional e moradora da Capital Federal, lembra quando, nesse ano, descobriram uma lista de comunistas e o nome de Zanine estava entre eles. Ela, depois de alguma insistência, conseguiu levá-lo à Embaixada da Iugoslávia para pedir asilo. Em vez de ficar o dia inteiro de papo para o ar, Zanine tratou de pôr ordem no jardim. "Aproveitava as caixas vazias de maçã e, com as tábuas, talhava figuras", conta Vera. Em Brasília, ele havia erguido casas de madeira e continuou a fazê-lo, quando se transferiu de novo para o Rio algum tempo após deixar a UnB. "Ao trabalhar com a madeira, Zanine foi na contramão da tendência da arquitetura moderna vigente, que usava tecnologias sofisticadas, como o concreto armado", opina o professor da FAU Hugo Segawa. Ele é autor de um ensaio minucioso sobre o arquiteto baiano no livro Ver Zanine. A obra (esgotada) marcou a exposição de mesmo nome, em 2003, organizada no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro a partir de uma pesquisa desenvolvida por Segawa e Luís Antônio Magnani. Mais do que escrever sobre a arquitetura de Zanine, o importante é senti-la. O administrador de empresas Luiz Antonio Ferreira mora há sete anos numa construção projetada por Zanine nos anos 80, defronte ao Lago Norte, em Brasília. "É uma casa sem ostentação que promove a vida em família: os quartos são pequenos e as áreas de convivência, bem grandes", conta ele, que ressalta o desenho dos telhados. É que as coberturas lembram antigas construções japonesas de madeira - provavelmente uma influência do observador arquiteto. Diploma, em Paris A maestria com que o profissional combinava madeiras descartadas, vidro, alvenaria e materiais de demolição, além de tirar partido da paisagem, num tempo em que ninguém falava sobre ambientalismo, criava espanto pelo caráter alternativo. Com as construções fluminenses, sobretudo as de Joatinga, sua fama cresceu e, com ela, veio um processo movido, nos anos 80, pelo CREA/RJ contra o exercício ilegal da profissão. A polêmica se estendeu até 1991, quando Zanine recebeu o título de arquiteto honorário pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil. Isso, somente depois de ser diplomado pela Academie d?Architecture de Paris em 1990. Nessa estada na Europa, a partir de 1989, fez projetos em Portugal, deu aulas na França e foi tema de uma exposição no badalado Musée des Arts Décoratifs, também em Paris. Um acidente de carro na capital francesa deixou Zanine debilitado. De 1998 em diante, radicou-se no Espírito Santo, onde continuou trabalhando ao lado da última mulher, Lourdes de Fátima Vieira Madeira. "Ele ficava em silêncio para criar", diz ela, que teria mais para contar, mas emociona-se fácil e desiste. Ao menos cita uma passagem que ilustra como o personagem, para além das técnicas construtivas, apreendeu algo estranho a quem fora ateu: Zanine considerava um milagre ter driblado o diagnóstico de mal de Alzheimer e a hidrocefalia com relativa qualidade de vida. Aos 82 anos, morreu em 20 de dezembro de 2001, segundo Lourdes, com a crença de que o seu trabalho era fruto de um dom presenteado por Deus.

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