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Ornato já foi um pecado

A questão do ornamento virou tema de discussão entre Adolf Loos e Josef Hoffmann e mereceu mostra

Por Maria Ignez Barbosa
Atualização:

Adolf Loos tinha sobre o ornamento idéias assustadoramente radicais e nunca hesitou em divulgá-las. Escreveu que "os primitivos, tais como as crianças, os criminosos, os degenerados e as mulheres" tinham uma irrefreável atração por se enfeitar e por ornamentar o seu entorno. Acreditava que, à medida que o homem evoluísse, essa necessidade desapareceria. Num de seus ensaios mais famosos, Ornamento e Crime, bradava como grande máxima que "a evolução da cultura é sinônimo da retirada do ornamento dos objetos do dia-a-dia". Um de seus alvos acabou sendo o colega - e também arquiteto famoso - Josef Hoffmann, co-fundador da Vienna Secession e da Wiener Werstatte. E essa tensa discussão sobre o papel do ornamento na arte e na arquitetura acabou virando tema de recente exposição no Museu Josef Hoffmann, em Brtnice, hoje território da República Tcheca. Organizada pelo MAK, o museu de artes decorativas de Viena, a mostra Josef Hoffmann - Adolf Loos, Ornamento e Tradição tenta ilustrar, por meio de móveis, objetos de vidro, desenhos, fotos e textos sobre eles, e de autoria desses influentes arquitetos, os pontos de convergência e as diferenças entre os dois. Foi ainda na escola primária em Iglau, na Morávia, que Hoffmann (1870-1956) e Loos (1870-1933) se conheceram. Mais tarde estudaram juntos no departamento de engenharia da Escola Secundária de Comércio em Brno. Depois da graduação não se viram mais até que, bem mais adiante, viriam a se reencontrar em Viena, ambos emergentes arquitetos. Na Viena de 1900, a questão do ornamento já era tema controverso no debate estético e, nesse ambiente de idéias novas e efervescentes, não seria de estranhar que animosidades viessem à tona e dominassem a cena. Hoffmann passou por diferentes estágios até que ficasse bem caracterizado o seu estilo de design. Foi aluno de Otto Wagner, que sonhava com fantasias arquitetônicas em grande escala; participou da Secessão Vienense, que não desprezava o ornamento, mas sim o reinventava; e definiu seus princípios puristas em obras como o Sanatório Purkersdorf, em 1904, e o Palácio Stoclet, em Bruxelas, construído entre 1905 e 1911. O sistema de superfícies geométricas, uma constante em sua trajetória, acabou se tornando sua marca registrada. Loos, de outra parte, crítico dos movimentos que à época faziam sucesso, desdenhava desses chamados artistas-arquitetos que assinavam o design de seus objetos e clamava uma volta à tradição do artesanato anônimo. Dizia que perdiam tempo e assim só fazia distanciar-se da Wiener Werskstätte, um movimento artístico reformista, que pretendia infundir com arte o ambiente e as coisas do dia-a-dia das pessoas. As suas mais conhecidas realizações no estilo e na linha de suas idéias radicais, baseadas no desenvolvimento funcional da tradição, são o interior do café Museu, na Karlsplatz de 1899, e a Casa da Michaelerplatz, em Viena, em 1911. Loos tentava seduzir não só com obras, mas com palavras e textos. Em 1908, em seu ensaio Ornamento e Crime, onde quer definitivamente associar a arquitetura despojada de ornamentos à cultura da modernidade, ele não deixa de tocar num ponto-chave da formulação da arquitetura moderna. Le Corbusier, em 1920, usou as idéias de Loos como exemplo da conversão da arquitetura ao modernismo, ao deixar para trás o historicismo do século 19. O ensaio de Loos parecia também já enunciar a branca abstração do less is more e a idéia de rigor funcional da arquitetura e do design internacional dominante no século 20. O que a exposição acaba trazendo também à tona é o aspecto científico e mais obscuro dessas suas idéias, na verdade baseadas na antropologia criminal do século 19 de Cesare Lombroso. Evolução da espécie Nietzsche, por exemplo, condenava a cultura da decoração e dizia que o ornamento era uma doença cujos sintomas não só infectavam a arquitetura histórica, como a própria historiografia contemporânea. E Loos, nesse mesmo ensaio, deixa claro que despojar-se do ornamento é premissa para a evolução da espécie civilizada, e que o ornamento seria "coisa de raças inferiores, primitivas, como a dos índios ou degeneradas". Fala com horror das tatuagens e consegue dizer que "se alguém tatuado morre em liberdade é porque isso está acontecendo um pouco antes do momento em que cometeria um crime", frase que hoje horrorisaria os ouvidos de qualquer ser politicamente correto ou contemporâneo. O feminino também parecia incomodá-lo: "O ornamento na mulher remonta à selvageria, tinha significado erótico". A rixa definitiva entre Loos e Hoffmann - iniciados na carreira a partir de premissas semelhantes, na medida em que ambos eram por uma nova arquitetura na trilha de Otto Wagner, e contra a pompa historicista do estilo Ringstrabe - se deu ainda cedo, em 1898. Alega-se que Hoffmann teria impedido que Loos desenhasse o salão de reuniões do edifício da Secessão Vienense. Em meio a tantas rivalidades, ciúmes e teorias, fato é que, cedo, já haviam decidido por trilhar caminhos opostos. O cúmulo nessa já famosa e histórica controvérsia deu-se quando Loos, em 1927, fez uma palestra no Musikverein de Viena chamada As Desgraças de Viena, Conclusão Final, onde, do alto de sua arrogância, decretava o fim do que julgava ser o inútil e o supérfluo.

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