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O país que ensina design

A postura artística do Japão, minimalista e voltada para a natureza, seduz o Ocidente desde os anos 1500

Por Maria Ignez Barbosa
Atualização:

A primeira vez que o Ocidente botou os pés no Japão foi no século 16. O país, precavido e cioso em preservar sua cultura milenar, tratou de fechar seus portos, deixando apenas um deles aberto para o comércio com as nações vizinhas. Tanto que, no século 19, em plena era vitoriana, quando os ingleses chegaram lá foi um susto só. Surpreenderam-se com os ambientes claros e minimalistas dos japoneses, tão em contraste com o décor carregado de panos, cortinados, móveis, objetos de cores escuras, formas e materiais os mais diversos e tão ao gosto da sociedade inglesa de então. Veja Também: Alimento para os sentidos Peixe voador Boas compras no nosso japão Arte que vem de Hiroshima Refúgio de um mestre Quadro para o príncipe Harmonia natural Pois, nos idos de 1543, foi a vez de os portugueses desembarcarem no Japão, levando a bordo os jesuítas que ali haveriam de permanecer até boa parte do século 17. Com eles, chegaram as sedas, os cetins, os tafetás e os damascos provenientes de Goa e que tanto encantaram os japoneses. Foi quando surgiu a arte Nambam, obras em pintura, escultura, cerâmica, mobiliário, laca, ornamentos e objetos de culto religioso criados pelos japoneses depois da chegada dos portugueses. A importância e o impacto dessa invasão estrangeira ficaram magistralmente registrados no famoso par de biombos de seis folhas pintados de ambos os lados, um maravilhoso exemplo da arte Nambam, atribuído a Kano Domi e que é uma das maiores preciosidades do Museu de Arte Antiga de Lisboa - consta que seriam os únicos fora do Japão. Um deles mostra a chegada do barco Negro a Nagasaki, carregado de mercadorias, e retrata, em fundo dourado, os marinheiros portugueses que tanto intrigavam os locais e que eles passaram a chamar de nambanjin. O outro, de fundo ainda mais dourado, mostra os viajantes portugueses ricamente vestidos diante de casas e jardins típicos da paisagem local. Na França, foi depois de uma exposição de 725 gravuras japonesas e 428 livros ilustrados na Escola de Belas-Artes em Paris, em 1890, que a influência da arte nipônica passou a se evidenciar entre os artistas. Para eles, adotar uma postura artística voltada para a natureza, como a dos japoneses, foi uma forma de confrontar a arte tradicional européia, baseada no intelecto e que ainda insistia na utilização de formas herdadas e modelos fixos. Transcendeu de simples modismo para leitmotiv de toda uma geração. Até então, o contato com a arte do Japão se restringira às exposições internacionais. Na virada do século, no entanto, coincidindo com a emergência da art nouveau, ficou a lição de que é possível ao espírito humano buscar a inspiração na fonte, ou seja, nas formas orgânicas da natureza e não mais no pedantismo decadente da forma rígida. Inspiração a pintores Passou a servir também como fonte de inspiração poética. O que Van Gogh, o herói do modernismo, produziu com paixão na maturidade manifestava grande familiaridade com a xilografia japonesa colorida. Ao irmão Theo, Van Gogh escreveu que "aqui minha vida cada vez mais se parece com a de um pintor japonês". Também as ousadas litografias do aristocrata Toulouse-Lautrec ganharam um desenho com disposição descentralizada e seccionada, típico da gravura japonesa. Com motivos do universo parisiense de Montmartre, ele conseguiu criar uma versão bem própria de cenas Kabuki. Até Cézanne, tenaz opositor da tendência japonesa, acabou se deixando influenciar. Haveria um paralelo entre as suas pinturas do Mont Sainte-Victoire à distancia e as séries do Monte Fuji, de Hokusai. Infindável é a lista dos artistas que, entre 1860 e 1910, direta ou indiretamente foram influenciados pela ótica japonesa. Pissarro, Monet, Gauguin, Seurat, Signac, Ensor, Redon, Munch, Bonnard, Klimt e Matisse são apenas alguns. Em seguida, nos anos 20, teríamos designers como Eileen Gray e Charles Rennie Mackintosh estudando as técnicas da laca japonesa para aplicação em seus próprios móveis e criações de linhas retas, limpas e já tão minimalistas. Considerações sobre a funcionalidade, as propriedades do material e os processos de trabalho, tão característicos da arte japonesa, se tornaram um arquétipo para o desenho do objeto de arte na virada do século, na Europa. Os novos estilos do movimento Artes e Ofícios somados à recusa da art nouveau em fazer uma diferenciação entre a arte aplicada, dita menor, e a arte "livre" ou maior, se espalhou pelo continente e revolucionou definitivamente o design. Daí, com muita propriedade, Josef Hoffmann ter declarado no programa de trabalho da Wiener Werkstätte que, "o que estamos tentando fazer é o que os japoneses sempre fizeram". Tatame, a medida de uma construção Não havia um estúdio, em 1900, fosse o de Gallé, Lalique ou Tiffany, que não produzisse uma interpretação própria e pessoal do estilo japonês. Na arquitetura, Frank Lloyd Wright e Josef Hoffman mostraram ter absorvido os fundamentos zen do "vazio cheio". Criaram o livre movimento entre o externo e o interno à base de construções simples e de material adequado. Hoje, mais do que nunca, o rigor e os fundamentos do estilo japonês parecem estar presentes no design e na arquitetura contemporâneos. A casa japonesa tradicional continua sendo um laboratório para o aprendizado da perfeita relação de equilíbrio entre espaço e objeto. Nela, o tatame, tapete feito de palha de arroz com 1,80 m x 0,90 m, é o que vai servir para definir as medidas da construção. Uma porta ou passagem vai ter de corresponder à altura de dois tatames e a largura, à de apenas um. Já a metragem quadrada do espaço vai ter de equivaler a uma determinada quantidade de tatames que, além de forrar o chão, podem servir de assento e cama. Ele é normalmente arrematado por um cadarço preto. O papel da cor contrastante, preto, vermelho ou dourado, é o de apenas delinear, fazer realçar as cores claras, próprias dos materiais provenientes da natureza, como a palha e a madeira clara. Outro elemento fundamental da casa japonesa é o shoji, nome dado aos painéis que correm sobre trilhos de madeira e servem não só para dividir o espaço como também, se removidos, devolver o espaço interno ao jardim, ou seja, à natureza. A função da casa é apenas servir de abrigo às intempéries, jamais afastar a pessoa do seu entorno natural. Hoje, o interesse por tudo o que é japonês popularizou-se. Desnecessário lembrar nossa mania por comida japonesa, o karaokê nos bares, o bonsai decorando ambientes, os minúsculos gadgets tecnológicos, o zen-budismo, o Pleats Please, de Issey Myake, a toy art e as lojas Muji, que, em Tóquio, Londres, Paris ou Nova York, vendem o mais lindo e puro design a preços acessíveis e que, aliás, seriam tão bem-vindas se aportassem em nossas paragens. Sorte a nossa que, apesar de todo o encanto por parte do Ocidente por all things japanese (ou seja, por tudo o que seja japonês), da arquitetura à moda, passando pela comida e pela competência tecnológica, os habitantes do país do sol nascente, por sua vez, continuam a pautar-se nos modos e costumes ocidentais, imitando os uniformes escolares das escolas européias, a roupa dos militares ingleses e se deixando fascinar pelas grifes do luxo ocidental. (nese@estadao.com.br).

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