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O mestre do Pequi

Hugo França cria móveis escultóricos a partir de raízes da árvore que sobrevivem às queimadas

Por Roberto Abolafio Jr.
Atualização:

Um auto-exílio fez o engenheiro industrial formado em 1975, em Porto Alegre, descobrir sua verdadeira vocação: o design. "Me enchi da vida na cidade e resolvi buscar um novo estilo de vida", lembra Hugo França, que no começo dos anos 80 foi para Trancoso, no sul da Bahia, e viveu lá durante 15 anos. O lugar, então, era somente uma aldeia de pescadores. Por meio da prática da pesca, ele conheceu o pequi vinagreiro - madeira que revolucionaria sua vida. "As canoas eram feitas dessa árvore, uma herança indígena", conta Hugo, que aos poucos descobriu as propriedades daquela espécie oleaginosa típica da Mata Atlântica baiana, cujas raízes centenárias sobrevivem às queimadas. Pelas mãos do profissional, elas se transformam em móveis escultóricos, ou esculturas funcionais, capazes de resgatar a natureza bruta onde quer que sejam expostos. Com sua figura esguia e jeito tímido, o designer atende a porta do apartamento no 11º andar de um edifício na Alameda Jaú, nos Jardins, em São Paulo. O imóvel de 250 m², construído na década de 1970, apresenta espaços generosos, como o living com paredes e piso brancos que lembram a atmosfera de uma galeria de arte. A luz natural da tarde chuvosa é pouca, mas o bastante para atravessar os janelões e ressaltar cores e texturas das peças criadas pelo profissional e outros designers, além daquelas de arte contemporânea. "É uma coleção em andamento", diz Hugo, que, entre outros autores, aponta escultura de Artur Lescher, telas de Iberê Camargo, Amélia Toledo, Antônio Dias e uma do irmão, Rafael França. Dentro da mesa de centro de vidro, criação de Ilse Lang (a partir de R$ 4.500, na Faro Design), a obra de Guto Lacaz chama a atenção: é uma mesinha com um livro sobre ela intitulado The book is on the table (R$ 5 mil, no ateliê do artista). Ou seja, "o livro está sobre a mesa" - uma diversão insólita. Mas o que impressiona mesmo é a grande mesa de pequi no fundo da sala. Com quase 1 tonelada, teve de ser içada até o 11º andar. Sob ela fica uma coleção de banquinhos assinados, mania do proprietário, como os exemplares do italiano Achille Castiglioni ou o do francês Philippe Starck - que mereceu, por parte de Hugo, uma releitura em pequi. "Queria dar de presente para ele", imagina. Com chaise, o amplo sofá de couro marrom se harmoniza com outro de revestimento meio desfiado. Explica-se: "É o lugar delas", diz o dono da casa, referindo-se às schnauzer Cuca e Pina, que saltitam para cá e para lá. Faz dois anos e meio que ele vive ali com a mulher, Tânia Soriani. Do escritório ao banheiro, em todos os ambientes da casa há criações do profissional, como a mesa da cozinha. O espaço se integra ao living por meio de uma abertura, junto da qual ficam duas banquetas (R$ 2.289 cada uma, na Benedixt). Sobre a bancada, vasos com flores, adquiridos na loja do MoMA de Nova York. As peças de pequi exemplificam como Hugo reaproveita a madeira de modo exemplar. No próprio local onde são encontradas as raízes, ele vai com sua equipe e já pensa no item que resultará daquela estrutura orgânica. Pode ser uma mesa, um banco, uma poltrona. A partir daí, faz cortes mínimos para obter a estrutura matriz do móvel idealizado. Só depois o bloco de madeira é transferido para a oficina do designer para detalhes e acabamento. Desde que suas primeiras experiências criaram impacto em 1998, ao integrar o salão Brasil Faz Design, em Milão, o trabalho do autor é cada vez mais valorizado por aqui e nos mercados europeu e americano. Recentemente, foi objeto de uma monografia escrita por Evelise Grunow e tranformada em livro (Hugo França, Ed. Viana & Mosley, R$ 62, na Livraria Cultura) e, em maio, terá uma mostra individual em Nova York, na R 20th Century Gallery. Além de representar Hugo, o endereço comercializa peças de consagrados nomes internacionais e de brasileiros, caso de Joaquim Tenreiro, Oscar Niemeyer, Sergio Rodrigues e José Zanine Caldas. Os desenhos desse último e a idéia de aproveitar madeira e resíduos florestais, presente na obra de Frans Krajcberg, são referências notórias para Hugo França. Ele produz, no máximo, dez peças por mês - número que, confessa, tende a diminuir. Primeiro, porque as raízes de pequi devem rarear com o tempo, embora ele comece a pesquisar outras espécies, como oiticica e baraúna. "E também porque pretendo trabalhar menos", diz ele, meio brincando. Para se ter idéia, uma poltrona produzida pelo designer pode custar até R$ 25 mil.

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