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O conde que amava comer

Moïse de Camondo montou a mais bela e funcional cozinha residencial de Paris do início do século 20, hoje museu

Por Maria Ignez Barbosa
Atualização:

O conde Moïse de Camondo, conhecido colecionador, era tão apaixonado pela arte produzida na França na segunda metade do século 18 quanto pela requintada comida francesa. Foi para abrigar a sua fantástica coleção de móveis e objetos desse período que, em 1911, partiu para a construção da grande mansão na Rue Monceau, inspirada no Petit Trianon, de Versalhes. Nela, fez questão de instalar a mais bela, moderna e funcional cozinha residencial de que se teve notícia na Paris da época, além de fantásticas dependências para os chefs, ajudantes, mordomos, garçons, valetes, lavadeiras, amas e mucamas. Apesar do aparato, um convite para jantar era coisa bastante rara e, portanto, muito cobiçada. A morte do filho Nissim, em 1917, em combate aéreo durante a guerra, e a separação da mulher fizeram de Moïse um homem extremamente recatado. Quando recebia os amigos do mundo das artes ou do Clube dos Cem, círculo gastronômico fundado para promover o turismo e a tradição francesa de bem comer, era em geral para almoço, e de acordo com datas pré-agendadas e repetidas anualmente. Judeu e descendente de uma família de banqueiros turcos que se mudou para Paris em 1870, Moïse de Camondo, ao partir para a construção do que viria a ser hoje um dos mais requintados museus de artes decorativas de Paris, cuidou de bem especificar suas exigências para cada ambiente. Apenas a fachada lembraria o pavilhão criado em 1768 pelo arquiteto Ange-Jacques Gabriel para Luís XV e que, mais tarde, Maria Antonieta tornaria famoso. As salas de recepção foram destinadas a abrigar e expor a coleção de arte. O resto da casa, no entanto, teria de ser o mais funcional possível e beneficiar-se da mais recente e inovadora tecnologia de modo a que o serviço pudesse fluir com eficiência. As dependências de serviço foram agrupadas num dos lados da casa e ao longo de diversos andares. No térreo, perto da entrada das mercadorias, fica a cozi-nha, que, até 1999, apesar da morte de Camondo e da transformação da casa em museu em 1935, ficou abandonada e desconhecida do público. "Estava num estado deplorável, toda enferrujada. Parecia um navio afundado." Foi o que me disse, em Paris, Stephane Petrov, funcionário do museu e que trabalhou com a então curadora-chefe, Marie Laure de Gary, na supervisão das obras de reconstrução. Numa entrevista com a própria Marie Laure, autora do livro La demeure d?un collectionneur, fico sabendo que o arquiteto de Camondo, René Sergent, escolheu, para a fabricação de tão especializado equipamento, a empresa Cubain, responsável pelas montagens de cozinhas profissionais de hotéis, como as do Savoy e do Claridge?s, em Londres (1909), a do Trianon, em Versalhes (1910), as do Exército e Marinha francesas, a do Palácio de Mônaco e a do vice-rei da Índia, em Calcutá, além de outras em cortes européias. Fogão de lenha O que primeiro impressiona é o contraste entre uma arquitetura quase minimalista, com paredes e teto de azulejo branco demarcadas por listras pretas (e onde não se nota o rejunte), com os fornos de ferro fundido que evocam a cozinha tradicional. O fogão de lenha, ainda tão desejado pelos bons cozinheiros nesses tempos de transição entre dois mundos, duas guerras e uma virada do século, foi posto bem no meio sobre o chão de cerâmica branco e preto. Entre as duas principais janelas, um forno imponente com duas grelhas de cada lado, uma a carvão e outra a gás. Um fogão a gás foi depois substituído por outro elétrico e esmaltado que não mais existe. Muito sofisticado era o sistema de absorção de fumaça e de aromas, por meio de uma canalização sob o solo e do espaço entre o teto duplo, o que dispensava a coifa. Em toda volta do ambiente, armários baixos e prateleiras de carvalho abrigavam o equipamento de cozinha e as panelas de cobre. Em grandes pias de cerâmica, eram lavados os legumes e uma luz UV, junto à torneira, esterilizava a água. Longe do calor, os produtos perecíveis eram guardados num quarto gelado, equipado a partir de 1929 com um motor Frigidaire. Na copa adjacente, também azulejada, dois tanques de cobre eram usados para lavar os utensílios em altas temperaturas. Em outra, junto à sala de jantar, no criado-mudo, um aquecedor de pratos de ferro fundido para que a comida fosse servida em louça pré-aquecida. Cada empregado tinha o seu cofre numerado e com chave para o guardanapo, caneco pessoal e remédios, num armário também em carvalho na contígua sala de jantar a eles destinada e onde o mordomo principal presidia a mesa oval de 15 lugares. Havia também o escritório do chef que, todos os dias, despachava com o patrão sobre os menus. Museu, homenagem ao filho Em 9 de junho de 1933, o cardápio do almoço foi melão gelado seguido de filés de linguado Murat, galinha cozida no estragão e arroz créole, acompanhado de geléia de carne e salada de alface crespa. Mais ervilhas de jardim, palitos de queijo parmesão e granita (espécie de sorvete) de cereja. Os vinhos eram de dar hoje suspiros de emoção: Montrachet 1929, Château Margaux 1878, Echezeaux 1911, Champagne Mesnil Nature 1926. Nesse dia, o Cognac Tuilleries 1828, servido na hora do café, era a última garrafa disponível na adega. Como Moïse era de pouco receber, apesar de a estrutura sugerir o oposto, os seus chefs de cozinha, frustrados em suas aspirações criativas, não duravam no emprego. Todos, no entanto, eram dignos de Auguste Escoffier, o famoso chef francês que impunha seu estilo não só sobre os pratos de hotéis elegantes mas também sobre o desenho das melhores cozinhas francesas. E que certamente não concordaria com Camondo, que, no lugar de servir queijo antes da sobremesa como é o hábito francês, preferia oferecer tortinhas, ramequins ou condés de queijo. Em 1935, com instruções sobre a sua manutenção e regras sobre a coleção, inclusive a de que nenhum quadro ou móvel poderia jamais ser emprestado ou sair dali, o conde Moïse de Camondo decidiu que deixaria a casa e as coleções em testamento para a União Central de Artes Decorativas da França, de modo a que pudesse se transformar no Museu Nissim de Camondo, numa homenagem ao filho morto. Não viveu para testemunhar que também a sua cozinha seria hoje mais um foco de atenção e prazer para os visitantes, nem saber que nos cursos de desenho ali ministrados já passaram figuras como Philippe Starck, Gérard e Elizabeth Garouste e outros nomes tão famosos hoje na França (nese@estadao.com.br).

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