PUBLICIDADE

Luxo até no que é velho

Um dos maiores decoradores ingleses do século 20, David Mlinaric vai do 'shabby-chic' ao histórico impecável

Por Maria Ignez Barbosa
Atualização:

Simplicidade e cores aconchegantes na sala tão ao gosto do decorador. Foto: Divulgação Em Londres, ele entrou em cena nos agitados anos 60, com terno listrado mandado fazer com tecido de calça de fraque e col roulé. Tempos de revolução em matéria de usos e costumes. Amparados na tradição, os ingleses ditavam a vanguarda. E David Mlinaric não foi exceção. Hoje, ele é considerado um dos maiores e mais completos decoradores que a Inglaterra produziu no século 20, herdeiro do historicismo de John Fowler, o príncipe do décor das grandes estate houses inglesas, e revolucionário como David Hicks, aquele que soube sacudir a poeira para reinventar o passado em linguagem contemporânea. Um belo livro, Mlinaric on Decorating, a quatro mãos com a jornalista Mirabel Cecil, sobre sua vida e obra, acaba de ser lançado na Inglaterra pela editora Francis Lincoln Limited. De mãe inglesa e pai iugoslavo, David Mlinaric nasceu em Londres, em 1939. Em pequeno, de férias na praia, em vez de voltar-se para o mar, olhava para a vila, o jeito das casas, contando portas e janelas. E, por ter ouvido da professora, ao terminar a escola em 1950, que a decoração de interiores, que desejava seguir, não era, de verdade, profissão, resolveu cursar a Bartlett School of Architecture. Ali ganhou noções baseadas no tradicional princípio das belas artes, aquele de se chegar ao conhecimento por meio do desenho. E, apesar de desistir, após um ano, da formação em arquitetura para seguir o curso de decoração de interiores, o que ficou dessa experiência viria a ser para ele, mais tarde, de grande valia. Recém-formado, foi estagiar em Roma. Saía cidade afora medindo monumentos, aprendendo na fonte. No caminho de volta, conheceu Paris e, como quem não quer nada, passeando pela Rue Jacob, deu com Madeleine Castaing. Encantou-se com a visão poética que ela imprimia ao décor de sua loja. Impressionou-lhe a maneira com que ela juntava turquesa, verde-menta e cor-de-rosa a tecidos com estampa de peles de leopardo, a objetos e móveis pretos e dourados. Nada, em Londres, vira parecido. Nessa espécie de grand tour, visitou a terra de seu pai, a Iugoslávia, sempre reparando no feitio das casas, aprendendo sobre estilos. E também a Irlanda, a seu ver, de cidades georgianas perfeitas, onde o que é decadente tem charme e romantismo. Se em alguma daquelas grandes velhas casas um teto desabasse, as pessoas simplesmente mudavam de quarto. Descobriu beleza nessa decadência, beleza perigosa. Tinha consciência de que era preciso não ser nostálgico, e que o antigo, com classe e pedigree, mesmo que velho e usado, poderia sim, ser muito ser cool. Questão de olhar Foi o que tratou de fazer quando, pronto para encarar o futuro, viu-se de volta a Londres. Depois de um primeiro emprego com Michael Inchbald, famoso decorador então e hoje nome de escola de design de interiores, e de ele ter aprendido que "a decoração não é simplesmente uma questão de cor, mas de olhar, de traço e proporção, e que isso posto, o resto acompanha", David resolveu que seria independente. Com um amigo abriu seu primeiro estúdio, em Chelsea, em 33 Tite Street. A ordem era ser jovem, espontâneo, romper com as regras e reagir contra a geração anterior. As moças não queriam se vestir como suas mães e os meninos desejavam as roupas de Mick Jagger e Eric Clapton, ambos entre os primeiros clientes de David Mlinaric. Num clássico espaço de pé-direito altíssimo, com lareira e metros e metros de cadarço de tapeceiro funcionando como rodapé, roda-meio e roda-teto, o novo conceito, ali justificado também pela falta de dinheiro, é que tudo emanasse dignidade, mesmo que caindo aos pedaços. Detonado era o novo tom. Melhor velhos tapetes não restaurados e cores apagadas, molduras sem o brilho do ouro e poltronas de couro desgastado e molas à vista do que o mogno com brilho e o bem comportado. Na parede da lareira, se impunha, absoluto, um retrato em tamanho natural de um oficial da East India Company, uniforme vermelho, pintado por John Lucas em 1832, com rasgos e destituído de moldura. E um grande lustre, não eletrificado, com lâmpadas de parafina, que, para serem acesas, exigiam longa escada. E as cortinas, vermelhas do tom da roupa do oficial, de algodão indiano da loja Peter Jones, até hoje reduto de bons e baratos tecidos. Gabinetes indianos falariam de história e tapetes Anatolian eram os seus preferidos. Mirabel Cecil, coautora do livro e que escreve sobre interiores no Times, Country Life e The World of Interiors, conta de uma consulta sobre cortinas feita a David em 1975. Não podendo comprar novas para suas janelas maiores, ouviu dele que poderia aumentar as existentes com tecido liso que rimasse com a estampa das antigas. Em texto, descrevendo a sugestão, foi quando, pela primeira vez, se usou na imprensa a expressão shabby-chic, hoje tão banalizada. Foram, porém, bem curtos, os tempos de parcos recursos na vida de David Mlinaric. Logo ele estaria, com elegância, imaginação, noção de história e seu olhar distanciado de filho de estrangeiro, em relação à tradição inglesa, sendo chamado pelo National Trust para restaurar monumentos e também para criar interiores para famosos e endinheirados clientes. Para lorde Rothschild decorou a Spencer House, em Londres, e o Waddesdon Manor, em Buckinghamshire. Beningbrough Hall, Thorpe Hall, Nostell Priory e outros prédios históricos passaram por suas mãos. Fez embaixadas inglesas no exterior, como Paris e Washington. E, apesar de normalmente só serem convocados arquitetos, David idealizou galerias em museus do porte da National Gallery, da National Portrait Gallery, do Victoria & Albert. Também são dele os atuais interiores da Royal Opera House, em Covent Garden. No exterior, em lugares de clima e estilos os mais variados - França, Irlanda, Itália, Corfu, Mustique e Texas -, fez casas de campo, cidade, praia e castelos. Ao contrário de John Fowler, que viveu a Inglaterra de um período de decadência das grandes casas, David Mlinaric viveu o renascimento de muitas dessas residências, um período de maior prosperidade e boom econômico. Lady Di Quando morando em Londres, lembro de ter ido a festas na Spencer House, comprada alguns anos antes por lorde Rothschild, uma das poucas grandes estate house urbanas - pois é em geral no campo que elas se situam - e que pertenceu à família da princesa Diana. Restaurada por David Mlinaric, e brilhando como em seu apogeu no século 18, chama a atenção um grande lustre de Diego Giacometti no alto da grande escada que leva aos salões de recepção do segundo andar. Estivemos também em outras duas propriedades decoradas por David. Uma delas, Ashdown House, em Berkshire, interior da Inglaterra, bela casa neopaladiana que pertencera a Elizabete da Boêmia e fora cedida pelo patrimônio a amigos nossos que a restauraram e a conservam. Outra é o Castelo di Fighini, na Úmbria, onde os atuais donos compraram, totalmente em ruínas, não só o castelo, mas todas as pequenas casas de pedra da vila abandonada. Foi preciso, antes, que se criassem reservatórios de água, esgotos, toda uma nova infraestrutura. Só depois David pode arregaçar as mangas, para esse que foi um de seus mais gratificantes trabalhos. Só agora também me dou conta de que os suaves tons de rosa da sala de jantar, os turquesas e os verdes-menta que ele tanto gosta de usar e que ali encontrei podem ser reminiscências de seu encontro com Castaing. E que elementos como pinturas e esculturas de artistas contemporâneos, mesas Parson, tapetes de sisal e outros detalhes revelam um decorador que vive no presente. E que a sua mania de olhar o mundo desde a infância permite que ele possa ser italiano na Itália, grego na Grécia, francês na França e ao mesmo tempo, e sempre, David Mlinaric. A última vez que estivemos em Fighini, ele estava. Foi quando comentei que gostaria de escrever sobre ele e seu livro, então em gestação. Aqui o faço, e o sugiro aos aficionados. (nese@estadao.com.br)

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.