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Arquitetas brasileiras seguem os passos da espanhola Patricia Urquiola e da iraquiana Zaha Hadid e se lançam no mundo do design com uma linguagem bem particular

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Por Marcelo Lima
Atualização:

Arquitetura e design

 

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Ainda hoje, o tema desperta controvérsias nos círculos mais puristas. Afinal, estariam – ou não – os arquitetos aptos a desenvolver projetos de produtos? "Não se trata apenas de uma questão de escala, como se convencionou falar. Arquitetos podem desenhar produtos interessantes e a história está cheia de exemplos. Mas o risco de se escorregar no formalismo está sempre presente", alerta a designer e curadora Adriana Adam, ex-aluna da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi), no Rio, instituição que lançou as bases do desenho moderno nacional.

 

No entender da designer, que tem destacada atuação em praticamente todos os elos do sistema design, da criação ao ponto de venda, arquitetos costumam desenhar de fora para dentro. Entre os designers, ao menos na teoria, o processo se dá no sentido inverso. "Como método, partimos de um programa e de um conhecimento mais aprofundado dos materiais. Só então chegamos à forma final", considera. Nos últimos anos, coube à espanhola Patricia Urquiola, designer e arquiteta, colocar mais lenha na fogueira, deslocando o foco de discussão para outra órbita: as arquitetas e o design.

 

Reinando soberanas em um campo de atividade onde a presença masculina é dominante, Patricia e a iraquiana Zaha Hadid – também arquiteta – são hoje estrelas de peso na brilhante constelação do design internacional. Legítimas representantes de uma linhagem de arquitetas que se voltaram para o design, que inclui a francesa Charlotte Perriand, assistente de Le Corbusier em sua celebre chaise longue, e Lina Bo Bardi.

 

Patricia tem se notabilizado por uma leitura mais emotiva e menos racional do design. Partindo de um desenho rigoroso, na melhor tradição milanesa, sabe incorporar sensualidade às suas criações. "Se essa for a síntese do feminino aplicado ao design, que assim seja", provoca a crítica italiana Cristina Morozzi. "Quando trabalho, não penso em termos femininos ou masculinos. Com meu professor Achille Castiglioni aprendi ver as coisas sem preconceito", rebate Patricia.

 

É, portanto, imbuído da curiosidade de mapear essa criação dita feminina, que Casa& se lança por um território ainda pouco explorado, apresentando produtos criados por quatro de nossas arquitetas – Brunete Fraccaroli, Fernanda Marques, Helena Viscomi e Patricia Anastassiadis – que também se aventuraram no universo do design. Cheias de entusiasmo, elas apresentam agora suas primeiras coleções. Objetos que, por certo, não almejam a unanimidade. Transitam do protótipo à produção industrial, sem grandes traumas, e que, apesar de sua diversidade, compartilham o desejo de materializar ideias para não deixar que elas se dissipem.

 

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Na era das máquinas

 

Filha de um industrial da área têxtil, Patricia Anastassiadis não esconde que, em se tratando de design, seu coração bate mais forte pelo reino das máquinas e equipamentos. "Acho que está no sangue", brinca. "Gosto mesmo de linha de produção, de maquinário. De conhecer o timing de cada segmento e, na medida do possível, introduzir novos processos e materiais." Para ela, as especificidades técnicas e os estudos de posicionamento de mercado não se constituem limitações. Ao contrário: inspiram.

 

De onde vem a inspiração do seu design?

 

Meus interesses são múltiplos. Partem da arquitetura e dos interiores que, para mim, são complementares. Mas meu raio de ação é amplo: me interesso por filosofia, antropologia, artes e processos industriais. Aliás, acho que foi isso que me possibilitou atuar mais na indústria. Enquanto no artesanato a concepção e realização de uma peça ficam a cargo de uma só pessoa, na indústria a criação é coletiva.

 

Quais foram as suas experiências na área?

 

Há oito anos tive a chance de desenhar minha primeira linha de cerâmicas. O trabalho me motivou tanto que abri a Anastassiadis Conceitos, voltada para a criação de produtos. Desde então, já desenvolvi acessórios para armários, para banheiros e alguns lustres. Este ano, trabalho em dois novos segmento (ainda em segredo).

 

Como foi interferir no desenho de um ícone como a batedeira da KitchenAid?

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Um prazer e uma honra. Gosto de cozinhar e o objeto sempre foi mesmo um ícone para mim. A ideia foi realizar um resgate da feminilidade. Por isso, optei por uma tonalidade lilás que evoca o feminino, o delicado. Além disso, ela vem com um colar de contas Swarovski. Ou seja, mais feminina, impossível.

 

Por uma vida sustentável

 

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Para a arquiteta Helena Viscomi, o interesse pela sustentabilidade precede o próprio design. Fortemente vinculados às suas matérias-primas e a seu processo de obtenção, seus produtos falam, antes de mais nada, a língua do ambientalmente correto. "Parto sempre do material, mas me preocupo também com a forma como ele foi obtido, transportado e finalmente aplicado na construção dos objetos", pondera a designer de interiores que, nos últimos tempos, vem se dedicando à criação de um banco de dados de alcance nacional. Nele, fornecedores, processadores e associações de artesãos estão cuidadosamente catalogados. "Meu maior desejo é colocar todo esse conhecimento a serviço da indústria."

 

O projeto de produtos é mais ou menos complexo que o de interiores?

 

Em se tratando de um objeto de design, é essencial que a peça fale por si só, diferentemente da arquitetura de interiores, onde é a combinação de diversas variáveis que determina o resultado. O que interessa em um ambiente é o todo, enquanto o projeto de design tem maior autonomia. No projeto de arquitetura, o design entra como uma parte do todo, mas, enquanto objeto, deve valer unicamente. Ser relevante, útil e, ao mesmo tempo, atraente, sem se prender a questões de estilo.

 

E quais matérias-primas mais atraem você?

 

Antes de mais nada, as sustentáveis; são elas que me inspiram. Na verdade, nos dias de hoje, não consigo mais desvincular uma coisa da outra. Me interesso por materiais oriundos do reúso, da reciclagem. É um campo que oferece amplas possibilidades e nele me fascinam todas as etapas da cadeia: da análise à seleção da matéria-prima; da produção ao transporte. Afinal, nunca se sabe: o produto final pode tomar forma em qualquer desses estágios.

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O que você está desenvolvendo no momento?

 

Uma linha de objetos feitos de restos de pele de ovelha, que até então eram descartados pela indústria do couro. Trata-se de um material rico, organicamente falando. Possui uma bela textura, além de uma transparência única quando atravessado pela luz. Foram essas as qualidades que explorei na criação de minhas peças: móveis, que, sem serem luminárias, também incorporam a luz. E luminárias, que, sem serem móveis, foram construídas na escala deles.

 

A cor e o brilho

 

Quando menina, ela chegou a pintar seu gato de azul. Também decorava sabonetes e revestia bandejas de alumínio com tecidos e as submetia a camadas de cola, até que, impermeabilizadas, se tornassem aptas para o uso na praia. "As amigas da minha mãe foram minhas primeiras clientes, durante os intervalos de jogos de tranca no clube Paulistano", diverte-se. Irreverentes – mas sempre delicadas –, as criações da hoje arquiteta Brunete Fraccaroli conservam o frescor de seus primeiros anos. "O interesse pelo design é algo intrínseco a mim."

 

O que existe de comum entre um projeto de interiores e um de produto assinados por você?

 

A linha é muito tênue. Dedico-me aos dois com o mesmo entusiasmo. Talvez o projeto de interiores permita uma maior liberdade de ação, já que no caso de produtos industrializados temos de saber o que o mercado exige e trabalhar nesse sentido. No mais, eles são executados dentro dos mesmos critérios dos meus projetos de arquitetura e trazem sempre minhas marcas: a cor e o brilho.

 

Como essas duas características aparecem em seus trabalhos?

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Como nos meus interiores, quem me procura já tem em mente esse tipo de abordagem. Gosto de todas as cores, incluindo o branco. Acho que elas são um recurso poderoso. Com o brilho acontece a mesma coisa. Melhor ainda quando ele parte de uma matéria-prima naturalmente reflexiva, como a prata e os espelhos. Gosto também da transparência do vidro e do acrílico.

 

Já desenhou quais tipos de objetos?

 

Estou sempre desenhando. Desde pequena. E a lista não para de crescer. Comecei por desenhar uma linha de acessórios de prata; uma coisa bem boudoir, com espelhos, bules e caixinhas. Depois, criei uma linha de panelas coloridas e, finalmente, minhas joias. No segmento de decoração, já desenhei tapetes, camas e até cinzeiros. E também bancos de acrílico para a Brunete Essencial, grife que leva meu nome e meu estilo.

 

Única e pessoal

 

O interesse de Fernanda Marques pelo design nasceu naturalmente. "Foi consequência do meu trabalho como arquiteta; da necessidade de criar soluções diferenciadas para clientes que priorizam a exclusividade", conta. Já a atenção que tem dedicado à área dentro de seu escritório é mais recente. Mas não para de crescer. Segredo guardado a sete chaves, seu projeto de uma linha de móveis de aço inoxidável já tem lançamento definido. No mais, tudo permanece um mistério. "Meus planos são ambiciosos. Pretendo trabalhar o design na escala da arquitetura", adianta.

 

Como foi desenvolvido seu primeiro produto?

 

Meu desenho mais significativo foi o do banco Infinito, de lâminas de madeira, que nasceu diretamente do projeto do Loft 24/7, feito para a Casa Cor 2008. No cantinho do meu espaço, quase um apêndice, criei uma biblioteca, onde o móvel, além de servir como assento, visualmente funcionava como transição para o espelho d’água adjacente. Instantaneamente, ele caiu nas graças dos visitantes, que chegavam a disputar uma vaga para se sentar e dele contemplar o ambiente.

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O que existe de específico no projeto de design que o diferencia do projeto de arquitetura?

 

É preciso diferenciar o desenho voltado para a produção de peças em escala industrial e o design em tiragem limitada. O primeiro deve ter como foco o processo produtivo, a distribuição do produto, seu preço e todas as variáveis de mercado. O segundo se aproxima mais do fazer arquitetônico, na medida em que, muitas vezes, nada mais é que a melhor resposta a uma questão única, como acontece na arquitetura. O que muda, no caso, é a escala do trabalho.

 

E com qual das duas escalas de trabalho, a grande ou a exclusiva, você tem maior afinidade?

 

Interesso-me muito pela qualidade; a dimensão da produção é secundária. Já trabalhei com peças praticamente únicas, como o banco Infinito, e agora me arrisco na produção de móveis industrializados. Mas me fascina o trabalho de designers que colocam a mão na massa e manipulam a matéria-prima sem intermediários.

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