O que vocês estão produzindo de mais novo?
Fernando Campana: Um projeto de interior para a loja de calçados Camper, em Nova York. Terá a linha Transplastic, uma junção de fibras naturais com PVC. A gente usa uma cadeira de bar e volta à cadeira de café de 1900.
Para vocês, é difícil dizer não a tantos chamados?
Humberto Campana: Recentemente, a gente disse não para um projeto por questões ecológicas. A gente passa uma imagem ecofriendly, por isso acho legal ter coerência.
Fernando: Nem era o nosso programa promover a sustentabilidade. Era como favelado: constrói com o que tem na mão. O design da escassez.
Lá nos primórdios, os cestos de vime e os espelhos com conchas eram feitos por vocês por uma necessidade de expressão e sobrevivência?
Humberto: Sim. Durante a faculdade eu me descobri criador, com uma alma para criar. Eu lembro que, durante as aulas, ficava desenhando.
Como estava desenhando agora... A série Des-Confortáveis foi feita em 1989. Pode-se considerar que é a partir dela que os irmãos Campana tornaram-se designers legítimos?
Humberto: Com certeza.
Fernando: Foi uma tentativa de a gente se tornar escultor. Tínhamos tentado, de 1983 a 1989, fazer tudo com uma superfície perfeita, com mármore e alumínio, e tudo tinha um furinho ou um risco. Os clientes não aceitavam. Quando o Humberto fez aquela primeira cadeira com um espiral eu vi aí uma coisa mais libertária, de desencanar de ser reto...
Existe um quase clichê de que Humberto é a faceta mais sensível da dupla, enquanto Fernando é a mais racional. O que existe de contraparte nisso?Humberto: O que é sensibilidade?
Ele tem a sensibilidade dele. Quando um está fraquejando, o outro vem e socorre os projetos, tudo no trabalho. Eu também tenho meu lado racional, que é trabalhar com as mãos. Tem toda uma racionalidade, não é só intuição.Fernando: Ele tem essa manualidade, um bordado, e eu consigo fazer isso numa escala maior. Às vezes, ajudo uma semente que está gestando na cabeça dele a ter funcionalidade.
Os criadores, por causa da sensibilidade, são tidos muitas vezes como loucos. O quanto vocês já se aproximaram, de fato, da loucura?
Fernando: Não o suficiente para chegar...
Humberto: Às vezes acho que lido com a loucura. Acho que um criador precisa de sombra. Acho que precisa ir até o inferno para...
Fernando: Mas não a um nível de precisar ser internado. (risos)
O trabalho de vocês é tido como urbano. Quanto de caipira há nele?
Fernando: É muito presente. No tempo da cestaria, a gente pegava as cestas no interior, balaio, e transformava em cestas country para vender no Mappin. E tem o olhar; as soluções caipiras são interessantes. Quem potencializava isso era a Lina Bo Bardi. Eu adorava ver quando ela mostrava no Masp alguma coisa de um designer anônimo.
Humberto: Acho que o nosso trabalho faz essa fusão entre o urbano e o rural, seja por meio dos materiais ou da forma como ele é manufaturado, muito artesanal, o que é muito ligado ao campo.
Como é trabalhar direto um com o outro? Não cansa?
Fernando: Quando a gente briga, fica no máximo um dia sem se falar. Por isso, acho que é bom, dá uma dinâmica. Esgota. Tem uma tempestade. Daí renova toda a água. A gente não tem muito filtro. Além de irmãos, temos cumplicidade, somos amigos. Isso solta a crítica tanto na criação quanto no comportamento.
Humberto: Às vezes sufoca.
Que outras influências destacariam?
Os dois juntos: Niemeyer!
Humberto: Eu nasci quando Brasília foi projetada. Aqueles edifícios no Planalto Central pareciam uns esqueletos de dinossauros. A quantidade de reportagens que saíam na época sobre Brasília... Era o sonho, o futuro. Contaminou muito. Burle Marx também.
A perseverança é um conselho básico que vocês dão a jovens designers no livro recém-lançado. Mas não é preciso ter sorte também?
Fernando: Acho que tem aquele dia certo, em que a medalha está lá. Quando a gente foi mostrar as fotos das Des-Confortáveis na Nucleon 8, na hora quiseram.
Humberto: E também ter encontrado com o Massimo Morozzi.
A transposição do uso de materiais seria o conceito mais adequado de designar seus trabalhos?
Humberto: É a materialidade. Nosso trabalho é muito focado no material.
Fernando: É a subversão... O material vem antes da forma e da função. Ele vai ditar qual a forma e depois vamos elaborar a função. Se a gente for começar um projeto com toda essa carga poética e a matemática da função, a gente fica parado no computador e não sai mais. Tudo tem que sair como poesia e depois tem de se transformar em função num produto.
Vocês tiveram reconhecimento relativamente cedo. Além da persistência e da sorte, é preciso estar em sintonia com o espírito do tempo, não é?
Humberto: Eu acho. Eu sou médium. Eu tenho uma mediunidade de captar o momento, de traduzi-lo em material. Eu sonho, é mediunidade...
Sonha com quê?
Humberto: Sonhei hoje que queria fazer um tapete de veludo. Eu explicava para as meninas: olha, façam uns tubos de veludo e tentem fazer um crochê com isso. Agora que me veio... Eu tenho sonhado muito ultimamente, eu trabalho muito, acordo assim de manhã: exausto.
A favela ficou dez anos aqui até ser produzida pela Edra. Falta sensibilidade, investimento ou o que mais para a indústria brasileira?
Fernando: Acho que é ousadia. O timing certo do produto. Produto não é moda, que você coloca na vitrine e já...
Humberto: Sabe o que eu acho? A indústria é muito voltada para o consumidor, e o consumidor não é educado para entender o design contemporâneo. Na Europa já tem uma maior compreensão.
As pessoas confundem muito o nome dos dois?
Fernando: Total. Existe um mimetismo. Até no se vestir. Parece estratégia, mas não é. Hoje, não. Mas tem dia que a gente vem igualzinho. Tem até que ligar, se tem uma foto. A mesma cor, a mesma marca...
Vocês poderiam ter virado totens. Tentam driblar as armadilhas do ego como?
Fernando: Trabalhando. Voltando para o Brasil e ficando aqui no centro. Aí é que está a importância do peso caipira.
Humberto: É a essência mesmo. Acho que, quando o sucesso sobe, você perde o contato com o seu deus interior, com o divino. Para mim é muito mais importante.
Vocês tiveram formação católica?
Humberto: Sim. Eu tive um acidente no Grand Canyon, quase morri, sabe, e eu rezei para Nossa Senhora e consegui sair desse redemoinho.
Fernando: Às vezes esqueço de rezar.
Por que custam tão caro as peças de vocês? Tudo bem que é uma série limitada, mas a poltrona Banquete, por exemplo, sai por US$ 43 mil...
Humberto: O trabalho é muito artesanal, de alfaiataria mesmo.
Fernando: Os materiais são baratos, mas o tempo de elaboração, de engenharia nossa... Como fazer para parecer que aquilo é de verdade, e não ter ali por trás um monte de parafuso. Por exemplo, tentar desconstruir a cadeira Vermelha, tentar fazê-la parecer leve visualmente, você coloca a mão e só vê corda.
Vocês trabalham para viver ou vivem para trabalhar?
Fernando: Um pouquinho dos dois...
Humberto: Um pouquinho dos dois...
Para terminar, o que mais vale a pena na vida?
Fernando: Saber viver, porque senão...
Humberto: É conseguir mudar a cabeça das pessoas. Pode até ser pretensioso. Contaminar outras pessoas. Acho que a gente fez isso.
Jogo Rápido
Do que mais gosto na vida: ouvir música
Do que menos gosto na vida: da intolerância
Um ídolo: Jerry Lewis
Uma influência: Rita Lee
Um amor: Doris Day
Brotas é: onde não se fala em design
São Paulo é: feia, mas bonita
Meu lugar no mundo: Brotas
O luxo é: liberdade
O lixo é: reciclável
Uma cor: verde
Um cheiro: cítrico
Uma textura: da floresta, vista de cima
Um som: gosto de tantos que é difícil enumerar
Um prato: bife, milho refogado,
brusqueta de espinafre, mandioca frita
Um sonho recorrente: de poder voar
Um pesadelo: de não ver
Meu irmão e parceiro de trabalho é:
meu amigo, além de humano
Eu sou: ?
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