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Digna de nota

A fazenda Santa Úrsula - e alguns capítulos da história paulista

Por BETE HOPPE
Atualização:

A data - 1875 - no alto da ponte de ferro sobre o Rio Jaguari não deixa dúvidas. O ano marca a inauguração da Estrada de Ferro Mogiana, quando Jaguariúna (a 15 minutos de Campinas) se chamava Vila Bueno - que depois passou a ser Jaguari até ganhar, em 1944, o nome atual. Os trilhos deram lugar ao asfalto; os trens, aos carros. Mas a ferrovia que alavancou a economia paulista, criada por grandes fazendeiros para escoar o café, tem história que se mantém viva entre os moradores mais antigos, caso de Maria Teresa de Arruda Botelho Moraes, herdeira da fazenda que fica do outro lado da ponte. Aos 83 anos, sua disposição física (e mental) surpreendem. Ela faz questão de acompanhar a filha, a memorialista Maria Abigail Nogueira Moraes Ziggiatti, no passeio em direção à casa-sede. Única na região a pertencer à mesma família há mais de 200 anos, a fazenda Santa Úrsula, que pertenceu ao barão João de Ataliba Nogueira, tem uma narrativa que se confunde com a do próprio município. E Maria Teresa testemunhou parte dela. Ao redor, cavalos pastam entre palmeiras imperiais e uma alameda de jabuticabeiras perde-se no horizonte - são 20 alqueires de mata nativa, onde ainda se pode topar com jaguatirica, macaco e veado. No casarão branco e azul tudo é superlativo: fachada avarandada nos dois andares (chão de ladrilho hidráulico, que custa a partir de R$ 3 cada peça, na Ornatos Nossa Senhora da Penha), 44 janelões com largos peitoris, salas e salões, e madeira maciça - nas vigas, no assoalho, na escada de subida suave e na porta de entrada, trancada por chave (enorme) de ferro "que ainda funciona". Em processo de restauração, que já dura dois anos, o interior está um caos. "O telhado está pronto, só falta pintar e arrumar lá atrás. Mas ainda falta muito para terminar", diz Maria Abigail. Pau-a-pique e taipa Empoeirada pela obra, a memorabilia, quase toda em estilo Império, concentra-se no centro dos ambientes. São peças de jacarandá (par de poltronas, estilo e época Império brasileiro, ano 1850, custa R$ 4 mil na Passado Composto Clássico) com detalhes em mármore, espelhos de molduras trabalhadas, louças de rica porcelana (jogo de jantar inglês, filetado a ouro, com 39 peças: R$ 800 no Antiquário Anhangüera), prataria, copos de cristal. No salão da entrada lateral, um pedaço de parede descascada exibe as técnicas de construção, de pau-a-pique e taipa. Maria Abigail fala da fundação da Santa Úrsula em Vila Bueno - Ensaios para a História (Arte Escrita Editora), livro que escreveu com as jornalistas Fabiana Bruno e Marta Fontenele. Tem ainda pronto O Olhar de Francisco Pezzi, registro fotográfico feito por "um guarda-livro que conheceu a baronesa de Ataliba Nogueira...". Algumas dessas fotos ilustram o Vila Bueno, que também reproduz as inúmeras lembranças de Maria Teresa. "Era uma sesmaria de 3 mil alqueires, tudo mata, doada, em 1760, ao fundador de Piracicaba, Antônio Correia Barbosa, chamado de Capitão Povoador. Mas foi o filho, também Antônio, quem tomou posse", conta a matriarca. Em fins do século 18, ele deu início à construção da casa, mas morreu antes de concluir a obra. "Quem finalizou foi a mulher, Úrsula, por volta de 1830." Ainda em vida, Úrsula deixou a fazenda para a neta Luíza, a futura baronesa. "Mas já era bem menor, só tinha 700 alqueires. Úrsula vendia grandes glebas. Nesse sentido, é precursora dos loteamentos modernos", reconhece Maria Abigail, divertida. Segundo a memorialista, João de Ataliba Nogueira, um dos fundadores da Mogiana e seu presidente durante 18 anos, tornou-se barão em 1888. "Deve ter sido o último título outorgado por d. Pedro II", diz. E revela uma "arte" do barão: "Ele levou os trilhos até a fazenda." E assim a história chega a Maria Teresa, que se casou com Alberto, um dos netos do barão. "Foi em São Paulo, em 1947, e viemos viver numa casa pequena, aqui na fazenda. Só mudamos para o casarão quando meus sogros morreram, na década de 60." Esses anos marcam a venda dos primeiros 20 alqueires que iriam formar o (atual) bairro Jardim Santa Úrsula. "Na década de 70, foram mais 40 alqueires para a cervejaria Antarctica (hoje, AmBev); depois, outros 100 para uma fazenda vizinha. Restaram só os 47 alqueires atuais", diz ela. Mas o futuro da Santa Úrsula é uma incógnita. "Os custos da restauração são altos", admite Maria Abigail. "Precisamos de apoio para concluir as obras."

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