Atual depois de três séculos

Piranesi, que revolucionou a arquitetura e o design do seu tempo, ganha mostra em Nova York

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Por Maria Ignez Barbosa
Atualização:

Um Piranesi radical e surpreendente, arquiteto e designer de móveis e interiores, é o que nos revela uma bela exposição no Museu Cooper- Hewitt em Nova York, organizada em associação com o Rijksmuseum, da Holanda. Artista conhecido por suas lindas vistas da Roma antiga e pela famosa série de gravuras Os Encarcerados ou Prisões Imaginárias, o veneziano Giovanni Battista Piranesi, um dos mais famosos gravadores do século 18, nascido em 1720 e morto em 1778, foi treinado na arquitetura apesar de a profissão ainda não existir oficialmente. Embora tenha revolucionado a arquitetura com propostas inovadoras mais do que propriamente com edificações - e produzido móveis excêntricos ao introduzir e combinar elementos decorativos e motivos ornamentais inspirados nos mais variados estilos como o egípcio, o etrusco, o grego e o romano -, nas últimas décadas seu nome como arquiteto vinha sendo injustamente associado ao recente pós-modernismo, obcecado por motivos clássicos e já tão cansativo. Libertá-lo desse clichê é o que consegue esta exposição. Por meio de mais de 100 gravuras, desenhos originais e objetos decorativos, Piranesi, As Designer analisa os conceitos modernistas do arquiteto, mostra o impacto que causou em seus contemporâneos (como Robert Adam, François-Joseph Bélanger e Etienne-Louis Boullée), demonstra como sua influência ainda se faz sentir sobre designers contemporâneos (como Michael Graves, Peter Eisenman, Daniel Libeskind e Robert Venturi) e nos revela o artista radical, que na verdade foi conceitual e recusou-se a se dobrar às convenções de seu tempo. Sua liberdade de imaginação e sua disposição em contestar idéias preconcebidas tem tudo a ver com a preocupação dos designers contemporâneos. Piranesi, que cresceu e estudou em Veneza, era filho de operário e seu sonho, construir cidades. Em Roma, descobriu e apaixonou-se pelas famosas ruínas antigas que passaram a ser um constante e obsessivo tema de suas gravuras. Ali viveu, conheceu a pobreza e terminou seus dias já afamado como um dos maiores gravadores da época. Dispostos na primeira e segunda galerias estão os estudos topográficos da Roma antiga, fan-tasias arquiteturais, investigações arqueológicas e desenhos para projetos a ele encomendados e que lhe permitiram dar vazão a novos modos de expressão. Ao nos possibilitar a observação do desenho preliminar ao lado da peça impecavelmente terminada, a mostra deixa claros não só os conceitos, mas como se desenrolava o processo criativo de Piranesi. Mesa de 5 pés Já a galeria central reúne uma grande quantidade de móveis e objetos feitos para interiores, como chaminés, pedimentos, cômodas, mesas, cadeiras, candelabros, espelhos, apliques, vasos, urnas e bules para chá e café e que surpreendem pela beleza e pelos detalhes da ornamentação. Instiga o fato de uma mesa com tampo de mármore se sustentar sobre cinco, e não quatro, pés dourados com cabeças de leão. Seria apenas um recurso para adicionar mais ornamento? Para Piranesi, ao que se pode deduzir e concluir, menos nunca foi mais, muito pelo contrário. Além de fértil pensador, era um inquieto e sua devoção à antiguidade clássica fez com que se visse no meio de um dos mais acirrados debates de seu tempo - aquele entre acadêmicos e arquitetos franceses, que desejavam a volta aos modelos gregos, e os nacionalistas italianos, onde ele se incluía, e que defendiam a superioridade da arquitetura romana. Fincada nos ideais do Iluminismo, tratava-se menos de uma questão de estilo decorativo do que de ideal histórico e cultural. Seu mérito foi perceber o engodo dessas idealizações. Dizia que, em matéria de arquitetura, não havia um Éden ao qual retornar. Acreditava que somos livres para interpretar a história do nosso próprio jeito. E nessa linha de propor a liberação de impulsos criativos, e ao preparar, em 1749, os desenhos para as séries Prisões Imaginárias, desenhou escadas que levam a lugar nenhum, pontes soltas no espaço, paredes que não se fincam no solo e um labirinto de celas sob arcos, evocando fantasias mentais assustadoras. O contraste entre luzes e sombras, sempre presente em seus desenhos, também contribui para o retrato dessa alienação muito moderna. Nada do ali proposto poderia existir no mundo real, mas, numa atual leitura de seus desenhos, podemos perceber que serviram a um argumento filosófico bem mais amplo: o de questionar as inflexíveis hierarquias sociais e formalistas adotadas pela maioria dos arquitetos à época. Em seu mundo próprio, o irracional e o arbitrário triunfam sobre a ordem racional e assim sua arquitetura serve mais para expor as contradições do mundo do que propriamente para apresentar soluções. Até o inglês John Soane, famoso e também radical arquiteto neoclássico, apesar de advertir colegas e alunos em relação aos excessos de Piranesi, se deixou por ele influenciar. Um exemplo é o projeto tão sério e sombrio que fez em 1800 para o Banco da Inglaterra. Esboços e gravuras Um dos pontos altos da exposição é um grupo de esboços e gravuras com projetos de arquitetura e de objetos decorativos, que pertencem à coleção permanente do próprio museu, e às bibliotecas Morgan e Avery de Arquitetura da Universidade de Columbia, mostrados pela primeira vez ao lado de objetos correspondentes produzidos para a exposição com base nesses desenhos e em 3D. Na última galeria, fica demonstrado como a prática e a teoria incrivelmente modernistas de Piranesi continuam fazendo sentido tantos séculos depois. A suíte Prisões Imaginárias, que obriga o olhar do visitante a viajar através de ambigüidades espaciais e paradoxos visuais, é apresentada em justaposição a desenhos de arquitetos contemporâneos que utilizam elementos visuais complexos e similares para também estimular o interesse e a imaginação de quem olha. Entre esses trabalhos, o Estádio, de Peter Eisenman, no Arizona, e a série Micromega, de Daniel Libeskind. Também ali, criando novos paralelos e exemplificando o pioneirismo de Piranesi em misturar elementos e estilos arquitetônicos, muitos desenhos de arquitetos contemporâneos que igualmente tomam emprestado a ornamentação de diversas fontes. O belo catálogo de 200 páginas, com textos de arquitetos e especialistas em Piranesi, já é objeto de desejo e leitura imprescindível para jovens arquitetos e designers. A exposição viaja em fevereiro para o Teylers Museum, em Haarlem, na Holanda, onde continuará a mostrar que se livrar de ortodoxias é fundamental para o avanço da estética e que um legado de fantasias mentais pode ter mais alcance e duração do que monumentos concretos.

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