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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|Um ano e meio de pandemia no divã

Terapeuta faz balanço das principais questões enfrentadas pelas famílias

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Atualização:

 Foto: Pexels

Embora a gente já arrisque fazer alguns planos e a vacinação esteja avançando em todo o Brasil, a pandemia ainda parece longe de terminar e estamos todos exaustos: professores, alunos, pais, famílias, crianças e adolescentes. Depois de um ano e meio de isolamento social, home office, aulas online e muitas perdas, a conta já está chegando ou já chegou: mulheres-mães mais ansiosas, crianças que só assistem às aulas se a câmera estiver desligada e casais que tiveram que se reinventar para aguentar os desafios do excesso de convivência, divisão de tarefas e a sobrecarga de trabalho. Segundo o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Chile e um dos especialistas do Programa 'Encontro com Fátima Bernardes' da Rede Globo, temos que "investir no que é belo" para dar conta de aguentar a segunda etapa desse período tão difícil. "O contrário da exaustão não é descanso, é beleza. E é essa beleza que contribui para a gente se sentir bem e para a gente ter paz de espírito para seguir adiante", afirma. Alexandre conversou com o blog e fez um balanço dos desafios enfrentados pelas famílias durante a pandemia.

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Blog: Uma das primeiras mudanças que tivemos que enfrentar foi a mudança no conceito de trabalho. O home office entrou em cena e bagunçou as estruturas de muitas famílias. O que você tem ouvido sobre isso como terapeuta?

Alexandre: Na verdade eu acho que a gente está vivendo não é home office, é office home, porque o trabalho está ocupando muito mais espaço e foi ele que invadiu a casa, e não o contrário. Na cabeça das crianças demorou muito tempo para que isso pudesse ser minimamente equacionado - quando meu pai ou minha mãe tem disponibilidade para mim, quando é que nesse espaço da casa eu tenho meu pai e não o profissional, eu tenho a minha mãe e não a profissional? Isso levou um tempo.

O principal impacto dessa virtualização da vida na pandemia é que se acentuaram as carências afetivas. O toque, o encontro presencial, o abraço, tudo foi interrompido e adiado. Antes a criança podia brincar com o amigo e ali ela resolvia essas necessidades todas, às vezes era uma brincadeira que tinha até luta, abraço, mas o corpo estava em movimento. A criança precisa de tempos em tempos receber esse toque, esse afeto, então ela entra mesmo na sala, no quarto, onde está acontecendo o trabalho virtual do pai e da mãe. E qual dos dois que a criança interrompe na hora que ela tem um aperreio qualquer? Resposta universal: a mãe. E não é por que a mãe é mais dotada de competências, mas sim por que culturalmente isso já está posto e a criança sabe que a mãe resolve a questão dela mais rápido do que o pai.

Blog: Qual o impacto disso na vida dessas mulheres trabalhadoras que também são mães?

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Alexandre: Isso gera nas mulheres maior medo do desemprego, medo de não ser reconhecida como uma pessoa que sabe fazer essa fronteira entre o pessoal e o profissional, ela tem medo do que o chefe possa achar dela quando o filho entra por trás da câmera. E quando o filho entra por trás da câmera do pai e ele resolve a questão 'ganha biscoito', reconhecimento. É 'paizão', 'nossa, que maravilhoso', todo mundo ri. Mas quando isso acontece com a mãe, ela vive uma experiência muito ansiogênica, ou seja, é algo que gera muita ansiedade.

O psicólogo Alexandre Coimbra Amaral. Foto: Isaac Martins Lima

Blog: E qual seria o caminho para resolver essa questão?

Alexandre: Eu acho que isso se resolve culturalmente quando a gente começa a trabalhar dentro das empresas a normalização dessa ideia de que agora, nesse momento da vida, enquanto houver pandemia ou enquanto houver trabalho virtualizado a infância vai entrar na sala, os filhos vão entrar na sala, vão 'dar oi' para a câmera, a mãe vai precisar interromper, o pai vai precisar interromper. Então a gente está criando agora uma cultura de flexibilização desse tipo de coisa. O momento agora é esse.

Blog: As crianças também estão enfrentando essa virtualização da vida com a escola online, né?

Alexandre: A escola online é um paliativo bem difícil e a gente ainda não sabe qual o tipo de prejuízo cognitivo que essa geração vai ter por conta desses dois anos de escola online, a gente sabe que o conhecimento se constrói com o corpo todo, faz parte do processo de você adquirir conhecimento ver a professora, escutar a voz dela, sentir o cheiro, ter raiva dela, achar ela chata, poder virar para trás e falar com o colega 'nossa, ela é chata, né, que aula chata!', sair, conversar com os outros, abraçar o colega na hora do recreio - isso tudo constrói o processo de aprendizagem.

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Blog: Mas embora ainda não se saiba quais são as consequências disso a gente já consegue sentir que algumas coisas não estão bem, essa conta já está chegando para as famílias, né?

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Alexandre: A gente já consegue ver sim, já conseguimos perceber um monte de coisa acontecendo. Por exemplo: as crianças estão cada vez mais com a câmera fechada. O que essa câmera fechada está falando? Ela está falando 'eu não aguento mais', ela está falando 'desse jeito eu não quero aprender', pode estar falando de um processo mais depressivo, de uma certa desistência de lidar e de se vincular àquele grupo naquele momento desse jeito. Então tem crianças com mais câmeras fechadas, a gente tem também professores mais ansiosos, eles estão vivendo uma experiência muito difícil na pandemia, porque eles precisaram se reinventar em uma velocidade desumana, precisaram do dia para a noite aprender a lidar com programas com os quais eles não lidavam, um jeito de abordar o processo de aprendizagem que eles não tinham formação e não precisavam ter, não teriam que necessariamente ter tido. E eles também têm os filhos deles em casa. Então a gente tem esse desgaste, essa exaustão acontecendo no ambiente escolar. Está todo mundo exausto - os professores estão exaustos, os alunos estão exaustos, os pais estão exaustos. Tá todo mundo exausto.

A gente tem visto muito mais casos de depressão, muito mais ansiedade, sobretudo ansiedade, Rita, e as ansiedades estão se manifestando das maneiras mais diversas. Crianças com sobrepeso, comendo mais, se movimentando menos, projetando ansiedade em jogo eletrônico, então tem muito mais uso de tela e durante a aula e a criança deixa a tela desligada e liga a tela do jogo - o pai e a mãe estão lá no home office deles e eles não estão vendo que isso está acontecendo. Então tem toda uma nova problemática que está surgindo que é o tempo de exposição ao jogo, o vício em jogo, isso é tudo coisa que a gente vai ter que tratar não só agora, mas também no pós-pandemia.

Mas por outro lado eu sinto que a gente está construindo, aos poucos, saídas para isso. Tanto através das aulas presenciais com os protocolos possíveis - e aqui vale a gente dizer que uma sociedade que abre primeiro o shopping center e o campo de futebol para depois abrir escola é uma sociedade que não entendeu nada ainda sobre prioridades, a gente precisava ter protegido nossas crianças em primeiríssimo lugar, a primeira coisa que tem que reabrir na sociedade é a escola, depois se pensa sobre abrir outras coisas, primeiro se precisava pensar em proteger a necessidade de desenvolvimento de crianças e adolescentes, eles precisam estar em convivência do jeito que for possível dentro de um protocolo pandêmico.

Blog: E os casais, como estão enfrentando todos esses desafios? Nos primeiros meses da pandemia a gente conversou sobre o 'boom' de separações que estavam ocorrendo. Depois de um ano e meio, como estão as famílias?

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Alexandre:  Olha, a gente já teve a principal onda de separações. O que está acontecendo agora é um novo formato de relacionamento, porque todo esse efeito da construção de uma vida muito privada dentro da tela a gente já vivia antes. Circulavam 'memes' antes da pandemia de um casal sentado em um restaurante, cada um com o seu celular, sem olhar para o outro, e aquilo era um jantar romântico supostamente. A virtualização chama a pessoa para um mundo muito privado, muito individualizado - eu com a minha tela, eu com a minha vida. Então os casais estão procurando alternativas a isso, então construindo momentos em que saem, desliga todo mundo, agora não vai ter nenhuma tela, nem televisão, nem Netflix nem nada, nós vamos passar um tempo sem tela e vamos ficar só a gente, ou então vamos dar um passeio na natureza, vamos passar um tempo offline. Mas perceba que isso é um evento, porque o normal e esperado no meio da pandemia é a presença online e isso é o avesso do casamento, que é ao mesmo tempo o lugar do descanso do online, mas é também onde eu projeto as minhas angústias. O que a gente tem conversado mais com os casais é que não levem tão a ferro e a fogo essa explosão que acontece no ambiente do casamento porque isso pode ser o resultado de uma tensão vivida individualmente lá no trabalho virtualizado.

E diante de todas as ansiedades e inseguranças da pandemia - a minha mãe tá na outra casa, eu tenho lutos que eu estou acumulando, estou perdendo amigos para a Covid, o número de mortos não para de crescer, eu ainda não fui vacinado - então tudo isso pressiona as pessoas e se eu estou só com o meu cônjuge em algum momento, aquela louça que não foi limpa vira palco para um grito que estava precisando sair, é um grito que não é só por causa da louça suja, é o grito por todas essas dores que eu vivo.

Blog: Como terapeuta, qual o caminho que você aponta para a gente passar pelo que ainda falta passar nesse processo? O que você sugere para todos os que estão exaustos?

Alexandre: Temos que investir naquilo que é belo para cada pessoa. O contrário da exaustão não é descanso, é beleza. Aquilo que é belo para você, que te faz se sentir leve, com a sensação de que o tempo não passa. É a música? Aumente a quantidade de música na sua vida se é isso que te faz sentir bem. É contato com as pessoas? Insista no contato com as pessoas, ainda que virtualmente. Mas desliga a tela, conversa com ela só na voz. Vá levar o pão que você faz para o seu amigo, deixa um bilhete, uma carta. Se o que é belo para você é a natureza, vá para a natureza. Mas não desista do belo, como uma coisa diária na sua vida, porque essa beleza é o oxigênio sutil da vida que contribui para a gente se sentir bem e para a gente ter paz de espírito para seguir adiante.

A pandemia retirou muitas dessas belezas da nossa vida, algumas vão continuar indisponíveis enquanto a pandemia estiver acontecendo e eu tiver uma conduta responsável com a minha e com a saúde coletiva, mas outras que fazem parte de sua alma e que vão fazer você se sentir bem têm que se manter presentes.

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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