Foto do(a) blog

Ser mãe é padecer na internet

Opinião|Sou mãe e a favor do aborto

PUBLICIDADE

Foto do author Rita Lisauskas
Atualização:

 Foto: Alex Silva/Estadão. Protesto de mulheres na Avenida Paulista contra o PL 5069/2013 que prevê restrições à prática do aborto no Brasil

Eu nunca fiz um aborto. E se você não quiser fazer um aborto, também não é obrigada a fazer.

PUBLICIDADE

Mas todas as mulheres que querem abortar e têm dinheiro vão à clínicas chiquérrimas onde são tratadas com todo o respeito, higiene e com que há de mais moderno inventado pela medicina. Também são servidos cafés e petit-fours "Está boa a temperatura do ar condicionado, Dona Mariana?"

Tenho algumas amigas que já abortaram. Não foi uma escolha fácil para nenhuma delas. Mas tudo foi feito com segurança. Uma delas porque achou que não tinha estrutura financeira e emocional para ter um filho. Mas há mulheres que abortam porque são vítimas de estupro. Outras simplesmente porque não se veem como mães e querem dar outro rumo para vida. Algumas foram abandonadas pelo parceiro idiota, homens que usam e abusam do direito de praticar um aborto às avessas, simplesmente fugindo do mapa e fingindo que o problema não é com eles. Foram lá e fizeram. Sentiram culpa? Algumas sim, outras não. Saíram de lá vivas e saudáveis? Saíram.

As mulheres que não têm dinheiro para um aborto na clínica chiquérrima parecem não ter direito ao próprio corpo, ainda que sofram com os mesmos dilemas. Não têm estrutura emocional e financeira. Foram estupradas. Não se veem como mães. Abandonadas pelo parceiro que virou as costas para ela, praticando o aborto masculino socialmente aceito. Elas, como não têm dinheiro, como o Estado lhes vira as costas e a opinião pública aponta o dedo (Vagabunda! Na hora de abrir as pernas não pensou nas consequências, né?), compram um remedinho abortivo no mercado negro e sangram até a morte. Ou vão naquela clínica suja da periferia que mais parece um açougue. E morrem.

As complicações do aborto já são a quarta causa de morte materna no Brasil. É uma questão de saúde pública. E não precisa ser nenhum gênio para descobrir que não são as mulheres da clínica do cafezinho e do petit-four que são mutiladas ou morrem. São as mulheres desesperadas e sem dinheiro. Pobres. Da periferia. São aquelas que não têm com quem contar.

Publicidade

Quem diz que é contra o aborto porque é "a favor da vida" não pensa na vida dessas mulheres. A vida delas vale menos que a de alguém que não nasceu? Se esse bebê nascer sem amor, sem grana, sem pai, sem estrutura, sem escola, sem apoio, sem o direito a uma família (já que família agora é só a formada com pai e mãe, né Congresso Nacional), o que será dele?

Se é contra a sua religião, não faça. Mas não queira que sua fé decida o que outra mulher deve ou não fazer. Se você não pretende criar o filho de ninguém, se não será você quem dirá a criança que não tem comida em casa, se não será você quem vai reconhecer os traços de um estuprador no rosto dela, se não será você quem irá aguentar os nove meses de uma barriga indesejada, se não será você quem irá explicar aos vizinhos que não, "não, não sou casada", "não, esse filho não tem pai", "não, não sou vagabunda", "não, eu fui estuprada", "não, eu não estava vestida para ser estuprada", "não, não usei camisinha", você não tem direito a opinar sobre a gravidez alheia. E mesmo se respondeu "sim" a alguma das questões acima, também não tem o direito de querer obrigar ninguém a levar uma gravidez indesejada adiante.

Já foi provado: a legalização diminui o número de mortes maternas. Dê uma olhada no nosso vizinho, Uruguai, que jogou o número de mortes de mulheres que abortam próximo a zero. Também diminuirá o número de mulheres que buscam o Sistema Único de Saúde todos os anos para se recuperar de abortos mal feitos. O aborto seguro tem de estar disponível a todas que vão recorrer a ele, porque você querendo ou não, Eduardo Cunha esperneando ou não, as mulheres vão procurar o procedimento como opção para interromper uma gravidez indesejada.

O que o Congresso tenta empurrar-nos garganta abaixo é um retrocesso. Mulheres tendo de provar que realmente foram estupradas. Pílulas do dia seguinte proibidas. Cadeia para quem explicar para a mulher que o corpo é dela e que a escolha é dela.

Eu amo o meu filho. Porque eu quis ser mãe dele. Lutei para engravidar dele, inclusive. Reservei o melhor de mim para criá-lo. Uma criança só deve vir ao mundo se for desejada.

Publicidade

Leia mais: Casal gay conta a história de adoção do filho, rejeitado por três casais heterossexuais: "Acharam ele muito feio e negro demais"

Leia também: O dia em que Samuca, Elisa e Manu descobriram que há várias formas de se formar uma família

 

 

 

 

Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.