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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|Sexualidade é assunto para ser conversado desde a infância, garante psicólogo

Segundo Anderson Chalhub, o assunto também precisa ser debatido nas escolas

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Atualização:

 

 Foto: Estadão

Nos últimos anos, poucos assuntos 'apanharam' tanto nas redes sociais e nos grupos de Whats App quanto a educação sexual nas escolas. Mês passado, recebi pelo celular uma reportagem sobre o afastamento de uma professora que ensinou aos seus alunos adolescentes sobre o uso de preservativos masculinos e femininos. A matéria, compartilhada à exaustão, trazia o seguinte comentário: "os bons costumes da família brasileira estão sendo denegridos pelos educadores!".

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Falar sobre sexualidade em sala de aula é recomendação dos parâmetros curriculares de ciências do Ministério da Educação, o MEC, além de fazer parte da orientação técnica internacional sobre Educação em Sexualidade da UNESCO, que aponta que a educação sexual nas escolas deve servir para que os jovens façam "escolhas saudáveis e respeitáveis sobre relacionamentos, sexo e reprodução". Mas o Brasil parece estar na contramão desse entendimento. Mês passado o presidente eleito, Jair Bolsonaro, declarou publicamente ser contra a abordagem dessa questão pelas instituições de ensino. "Quem ensina sexo para a criança é o papai e a mamãe. Escola é lugar de aprender física, matemática, química. Fazer com que no futuro tenhamos um bom empregado, um bom patrão e um bom liberal", afirmou.

Mas quem estuda o assunto garante que a escola tem sim papel fundamental nessa discussão. O mestre em psicologia do desenvolvimento pela Universidade Federal da Bahia, Anderson Chalhub, afirma que criança tem o direito a espaços de conversa sobre sexualidade dentro de casa e também nas escolas. Chalhub também ressalta o papel fundamental das instituições de ensino em um mundo onde a maioria dos casos de pedofilia acontece dentro de casa. "Muitas vezes a violência sexual acontece quando a criança não tem um espaço de conversa sobre isso, não é ensinada que o corpo é dela, então não tem a mínima noção da violência sexual. Ela acha que está recebendo um cuidado quando está sendo, na verdade, violentada", explica.

Blog: Como é que você esse movimento de deixar de falar sobre sexualidade nas escolas?

Anderson: Falar sobre sexualidade e desenvolvimento infantil e dos adolescentes é uma necessidade, porque a criança já nasce em um corpo que sente prazer. E aí é bom a gente fazer uma distinção entre sexo e sexualidade, porque o sexo traz o erótico, a erotização do corpo de uma pessoa com o de outra pessoa, algo que acontece muito na adolescência e na idade adulta, mas na infância a gente fala de um corpo sexualizado, um corpo que é erógeno, que sente prazer. Eu considero que se você orienta esse prazer com psico-educação, em um ambiente que possa propiciar uma conversa sobre a sexualidade, inclusive com as crianças, assim elas ficam situadas no que podem fazer quando esse corpo começa a se erotizar. Sexualidade é do humano e isso não depende da idade. E se ela faz parte do ser humano, por que não falar sobre a sexualidade desde a infância?

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Blog: E como puxar essa conversa?

Anderson: Hoje a gente tem uma literatura muito bacana para crianças, que fala não só de como as crianças são concebidas, algo que ainda é um tabu, que muitas vezes passa por uma dificuldade do adulto, que prefere fantasiar sem trazer verdade a essa criança durante essa conversa. Geralmente conta-se que a criança foi trazida por uma cegonha ou que foi gerada de uma sementinha que o pai planta na mãe. Eu considero que a partir de uma determinada idade, por volta de 5 anos,  já é possível falar de sexualidade com as crianças e isso a ajuda a se situar no mundo. Mas quando a gente trata isso como um tabu e enche de moralidade esse momento de descoberta, ela vai castrando esse corpo, impedindo esse corpo de sentir. Se não houver um espaço para se conversar sobre isso, debater sobre isso, ela pode deixar de sentir esse corpo no mundo. Essa é uma necessidade muito grande não só nas escolas, mas inicialmente as famílias precisam falar mais sobre isso.

O mestre em psicologia pela UFBA, Anderson Chalhub Foto: Estadão

Blog: Como a gente abordaria esse assunto com as crianças a partir dos 5 anos?

Anderson: Existem histórias que podem ser contadas às crianças com a ajuda de livros infantis (veja no final dessa matéria uma lista de livros indicados pelo psicólogo). Essa é uma ideia bacana, contar uma historinha e depois bater um papo sobre o que a criança sentiu, como ela percebeu aquilo, como ela ouviu a história, abrindo-se assim um espaço de conversação nessa família. A gente tem que parar de pensar que uma criança de 5 anos não tem compreensão sobre as coisas, ainda mais essa geração que está aí, que nessa idade já chega com uma série de "por quês", tem questionamentos sobre o que acontece no mundo, o que acontece com ela e com os outros. E se a gente fica fantasiando para a criança, a gente a empurra para um lugar além da realidade. Não que a fantasia não seja algo importante, não é isso, mas a gente não pode confundir fantasia com mentira, entende?

Blog: Se essas histórias não contam a história da cegonha e da 'sementinha', como abordam o assunto?

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Anderson: Elas explicam para a criança como é um corpo infantil e um corpo adulto, as diferenças anatômicas entre um e outro, a diferença entre os sexos, o que o menino tem, o que a menina tem, o que o menino sente, o que a menina sente. Por que não falar disso? Isso não erotiza a criança. O que erotiza a criança é o pudor do adulto. A criança tem a possibilidade de perguntar se ela tiver um espaço para ouvir e falar sobre isso. Na minha infância eu aprendi que tinha nascido graças a uma 'sementinha' e isso para mim, durante um tempo, foi algo muito complicado, porque eu ficava procurando em mim uma semente, igual a das plantas, sem ter noção de como surgiu uma pessoa dali. A gente pode contar para as crianças que elas nasceram a partir da junção de duas células, de uma forma lúdica, porém real.

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Blog: Quais são os ganhos de falar sobre sexualidade com as crianças?

Anderson: Nesse processo ela começa a ter noção dos limites do seu corpo no contato com outras pessoas, com estranhos. Ela precisa ser ensinada que o corpo é uma propriedade dela e que pessoas estranhas não podem tocá-la. É importante que a família dê segurança para a criança na exploração desse corpo para que ela saiba quem pode tocá-lo. Se a criança ou o adolescente não conhece seu próprio corpo, se não há uma conversa sobre ele, qualquer pessoa pode se apropriar desse corpo. Muitas vezes a violência sexual acontece quando criança não tem um espaço de conversa sobre isso, não entende que o corpo é dela, então a criança não tem a mínima noção da violência sexual, achando que está recebendo um cuidado quando está sendo, na verdade, violentada.

Livro é um dos indicados pelo psicólogo para falar sobre sexualidade com as crianças. (Lista completa no final da entrevista.) Foto: Estadão

Blog: Em um contexto que a gente sabe que a maioria dos casos de pedofilia acontece dentro da família (segundo o Ministério da Saúde, a maioria dos casos de violência sexual é cometida por parentes da criança e do adolescente ), qual a importância, na sua opinião, da escola também falar sobre sexualidade?

Anderson: A escola é o primeiro centro de diagnóstico dos problemas que podem acontecer no desenvolvimento da criança. Não só os sexuais, mas também de maus tratos e violência. Eu acho importante que a escola seja um centro de proteção mesmo. Inclusive em termos de prevenção. E é importante, cada vez mais, entender a família na escola, para que a instituição seja mais hábil e tenha mais competências de identificar os casos de violência que ocorrem na família e de encontrar alguém confiável, que se una à escola, para salvar essa criança. Isso é uma necessidade. Por isso precisa haver espaço para se falar disso na escola. Agora, precisa haver uma formação desses atores sociais, algo que eu acho que ainda é bastante deficitário no Brasil. Os professores não sabem o que fazer com a sexualidade das crianças, parece que entram em pânico extremo quando a criança mostra que o corpo dela já sente prazer. Se não há um corpo docente para conscientizar e abrir um espaço de debate com as famílias sobre isso, se não for feita uma parceria, a escola constrói algo que a família na sequência destrói. O caminho não é jogar a peteca de um para o outro, tem que haver um processo de continuidade, para que a criança se sinta segura nos dois ambientes.

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Blog: Quais outras questões desse contexto deveriam ser discutidas pelas escolas, nas sua opinião?

Anderson: Uma das maiores formas de perpetrar violência a uma criança é não dar escolha a ela. Por que se contar apenas histórias em que o final feliz, por exemplo, é entre um príncipe e uma princesa que foram felizes para sempre? Por que não apresentar outras possibilidades como a de um final feliz entre um príncipe e outro príncipe? Uma princesa com outra princesa? Quando se dá uma possibilidade só para uma criança você está imprimindo violência. Porque ela entende que só existe um caminho na vida. A gente precisa mostrar que existem outros tipos de família que pode ser diferente do que a que ela tem em casa, por exemplo. Existem famílias homoparentais, com dois pais ou duas mães, monoparentais, com apenas a mãe ou o pai e por aí vai.

Blog: Esse tipo de discussão ajuda a combater o preconceito?

Anderson: Sem dúvida. Precisamos ter debates e espaços para isso. Por que existem tantos casos de bullying nas escolas, em todas as escolas? Por que hoje temos casos com mais violência? Porque não existe discussão sobre tolerância e respeito às diferenças.

Blog: A gente discutiu até agora sobre o caminho ideal a ser trilhado quando o assunto é discutir sexualidade com crianças e adolescentes. Mas estamos caminhando para o oposto disso, de se tirar as discussões sobre sexualidade de dentro das escolas. Qual seria o impacto disso, no seu ponto de vista?

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Anderson: Eu estou desesperançoso, muito triste e muito preocupado com o que está por vir. A gente pode dar um passo para trás em tudo o que se conquistou como direito ao longo de tantos anos como democracia. Educação e saúde andam juntas, estão no mesmo patamar e se conectam profundamente. Eu acredito que os espaços de resistência, formados por famílias conscientes, escolas politizadas, podem ser um contra-modelo do que vai se apresentar daqui para diante. As crianças têm direito a um espaço de discussão. Se o tabu sobre conversas sobre sexualidade for sendo incentivado, automaticamente vão aumentar os índices de doenças sexualmente transmissíveis, o uso de camisinha e de anti-contraceptivos cairá. Só existe processo de conscientização se ele for feito através da educação. Se não puder existir um espaço de debate, se não se puder falar sobre isso, estamos falando de opressão, de violência e, automaticamente, as pessoas começarão a adoecer.

Lista de livros sugeridos pelo mestre em psicologia Anderson Chalhub:

  1. Sexo não é bicho-papão, de Marcos Ribeiro
  2. Mamãe, como eu nasci, de Marcos Ribeiro
  3. De onde viemos?, de Peter Mayle Artur Robins
  4. Mamãe botou um ovo!, de Babette Cole
  5. Como eu fui feito?, de Yvette Lodge

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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