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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|O filho que nasce depois da perda de outro filho. Texto sobre a fé que só as mães têm

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Atualização:

Por Anne Campos de Luca

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Depois de dois abortos eu e meu marido passamos por um período de luto. Eu fui investigar o porquê de ter perdido dois bebês e os laudos dos geneticistas alegavam que não tínhamos absolutamente nada além da trombofilia (Fator V Leiden) que me obrigou a tomar injeções durante a gestação. Éramos apenas um casal normal. Nos reerguemos e menos de seis meses depois lá estava eu grávida pela terceira vez. E desta vez falei para a minha médica que queria o mínimo de exames, queria ser uma gestante relax. Descobrimos logo que era uma menina. A minha Alice.

Mais uma vez, durante o pré-natal, foi notada uma diferença no desenvolvimento do bebê que eu esperava com o tempo de gestação. Alice também ganhava pouco peso e o líquido estava sempre baixo. Com cinco meses saí de licença do trabalho para fazer repouso, comer bem e beber muita água. Surtiu um efeito bem sutil, mas foi bom. Com 25 semanas, após o ultrassom morfológico, a minha médica pediu que eu fizesse um ecocardiograma fetal que eu achei se tratar de um exame de rotina. Depois de quase uma hora me examinando, a médica disse que a minha filha tinha uma cardiopatia chamada Tetralogia de Fallot e que havia bom prognóstico se o cariótipo dela fosse normal, ou seja, havia a desconfiança de que ela tivesse alguma alteração no número de cromossomos.

Saí da sala de exame e fui ao banheiro. Chorei, esmurrei as paredes, e quando enxuguei as lágrimas recebi o telefonema da minha médica que já tinha marcado uma amniocentese para o dia seguinte, com um médico de confiança dela. Concordei, mas ao pesquisar o tal exame vi que era aquele que se fazia para saber se o bebê tinha alguma Síndrome, como a de Down. Liguei de volta pra ela e falei: "Saber se minha filha tem Síndrome de Down não vai mudar o meu amor por ela. Não vou fazer nenhum exame. Não quero que enfiem uma agulha na minha barrriga!" E a minha médica linda disse, com todo amor do mundo, que ficava feliz que eu pensasse assim, mas que a amniocentese detectava também outros tipos de alterações e que queria que eu a fizesse sim. Obediente que sou, tentei perder a hora no dia seguinte, data do exame, mas o marido CDF não deixou.

Para a minha surpresa o exame não doeu nada e foi super tranquilo. Mas o resultado sairia em apenas três semanas. Três longas semanas. Paguei a mais para ter o resultado das quatro principais alterações de cariótipo mais cedo, antes do laudo completo. Tentei ter acesso ao resultados logo, mas eles só eram passados para o médico que os solicitou. No dia de fazer um novo ultrassom, achei estranho que a minha médica me reservou o último horário. Entrei na sala e vi que ela não estava bem. No fim do exame e com lágrimas nos olhos ela contou que a minha Alice tinha uma alteração genética grave. Ao invés de ser 46XX, como todas as mulheres - com 23 pares de cromossomos vindos do pai e 23 da mãe - Alice tinha 69 cromossomos e era XXX, uma alteração genética chamada triploidia. Perguntei como seria a vida com Alice e ela nos contou que não existia na literatura médica nenhum caso de bebê que havia sobrevivido, ou seja, não havia perspectiva de vida fora do útero. Falou também que geralmente esses bebês não passam dos primeiros meses de gestação e nos casos em que nascem vivos, morrem após o parto, ou dias depois na UTI.

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Entrei em desespero.Passei a viver com uma sentença de morte no meu ventre. Pesquisei e vi mães portuguesas que conseguiram interromper a gestação, mas não tive coragem de fazer absolutamente nada. Passei a ter uma fé ainda maior na vida, não deixei de acreditar na minha pequena, cuidei de cada detalhezinho, cada grama que ela ganhava nós comemorávamos muito. Ficava deitada o dia todo, lia muito, tentava me distrair ao máximo tentando achar um pouco de alegria em pequenas coisas. Eu estava com 37 semanas de gestação quando notei que ela estava muito quietinha. No ultrassom o médico viu que o líquido amniótico estava muito baixo e Alice estava entrando em sofrimento. Saí da sala de exame direto para a maternidade.Fui chorando para o centro cirúrgico. Minha situação contrastava com a de outras mães que decoravam os quartos, penduravam os enfeites na porta e tiravam fotos com a família. Segurei na mão do meu marido durante a cesárea até a hora do nascimento. Não houve choro, só aquele silêncio ensurdecedor. A médica me mostrou a Alice, um pacotinho lindo que foi entubado e levado direto para a UTI.

Subi para o quarto e embora nunca tenha perguntado tenho certeza que eu estava muito medicada porque mal conseguia abrir os olhos, só dormia. No dia seguinte, minha mãe praticamente me forçou a levantar da cama para ir até à UTI. Alice precisava do meu amor. Eu, sonolenta, fui. Fiquei ali analisando e lendo mil vezes o meu nome escrito na incubadora. Estava tentando assimilar que aquela ali era a minha Alice. Demorei para cair na real e quando aconteceu não conseguia parar de chorar: sentia um amor tão grande e amava passar a mão naquela pele lisinha e transparente, naquele narizinho arrebitado. Quanto mais a medicina a considerava anormal mais eu a amava.

No segundo dia após o nascimento dela e depois de muitas visitas doloridas à UTI vendo-a cada vez pior, minha mãe me puxou para dentro do banheiro do quarto e começou a fazer uma oração. Eu lembro dela falando para Deus que a vida da Alice não nos pertencia e que a partir daquele momento ela estava nas mãos D´Ele. Aquilo aliviou o peso no meu peito e me revigorou. Pouco antes das oito da noite o telefone do quarto tocou e pela primeira vez desde a internação eu atendi. Era a médica da UTI pedindo que eu e meu marido fossemos ate lá. Eu já sabia. Chegando lá me contaram que a Alice havia sofrido uma parada cardíaca, que a haviam reanimado, mas que ela poderia ter outra a qualquer instante. Pediram que eu me despedisse da minha filha. Eu não conseguia assimilar a ideia de que jamais a veria de novo, que jamais a levaria para passear, que ela não usaria aquele monte de roupas lindas que havíamos comprado e que eu não passaria nem uma noite com ela dormindo nos meus braços. Não quis pegá-la no colo. Preferi passar a mão no corpinho dela e falar o quanto a amava. Depois disso saí. Passaram 40 minutos e ligaram avisando que Alice havia partido.Foi no dia 5 de dezembro de 2012 que a minha Alice faleceu. Não fui à cremação, nem joguei as cinzas dela. Tentei ficar longe de tudo que fosse me afastar da lembrança da minha filha viva. Urrei de dor, chorava e tinha a sensação que jamais voltaria a ser a mesma Anne de sempre.

Depois de meses de tristeza e de uma série de exames que me convenceram que éramos sim capazes de gerar um filho saudável, recebi a notícia de que estava grávida. Era dezembro de 2013, um ano depois de perder a Alice. Tive medo? Sim. Mas havia uma certeza muito grande que tudo daria certo. Tive uma gravidez com poucos sustos, um bebezão se desenvolvendo perfeitamente. Repeti vários exames que tinha muito medo de fazer e ouvi muita coisa de pessoas que eu não esperava que pareciam verdadeiros testes de fé. Gente que ao me ver grávida de novo me aconselhava a "esperar um pouco antes de comemorar". Gente dizendo, ironicamente, que eu era corajosa. Ouvi outras barbaridades que nem valem a pena serem repetidas. Foram em momentos assim que percebi que havia conquistado o tão sonhado domínio próprio, que é um dos frutos do Espírito Santo, citados na Bíblia. Escrevo esse texto de saída para o hospital. Faltam poucas horas para o nascimento do meu Davi. Faltam também palavras para descrever o que estou sentindo agora. Só consigo lembrar de um versículo que diz: "A fé é a certeza das coisas que se esperam e convicção de fatos que não se vêem."

Opinião por ritalisauskas
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