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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|O brincar resiste a tudo, inclusive ao confinamento

Documentário mostra o brincar em casa durante a pandemia

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 Foto: Divulgação

A partir do momento em que a OMS decretou que o mundo enfrentava uma pandemia de coronavírus, o 'lá fora' começou a ser retirado da vida das crianças. As aulas foram suspensas, os parques interditados. Brincar passou a ser um verbo conjugado cada vez mais dentro de casa, por poucas crianças ou apenas uma, no caso das famílias com filhos únicos. Foi aí que a educadora Renata Meirelles e o documentarista David Reeks, do projeto Território do Brincar, uma parceria com o Instituto Alana, decidiram recalcular a rota - estavam produzindo um documentário sobre o brincar na cidade de São Paulo - e descobrir como essa restrição abrupta estava impactando na vida dos pequenos e de de suas famílias.

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O resultado dessa pesquisa estreia hoje, 22/03, na plataforma Videocamp. É o documentário ' Brincar em Casa, fruto de meses gravações online com 55 famílias. O último ano não foi fácil para ninguém, mas o brincar é resiliente e dribla as condições mais desafiadoras impostas às crianças, conta Renata Meirelles, mãe de dois meninos. "Eu não gostaria que nunca mais, em hipótese alguma, a gente passasse pelo que a gente tem passado e pelo que as crianças têm vivido atualmente. Mas por mais restritivo que seja o momento, as crianças encontram caminhos e aí você vê como é forte o brincar, porque ele está lá. De alguma forma está lá. Pulsando", revela.

Blog: O 'Território do Brincar' sempre se debruçou sobre essa questão do brincar infantil. Quando vocês tiveram o 'estalo' de  observar como estava o brincar dentro de casa, com a pandemia?

Renata: No começo de 2020, o Território do Brincar e sua equipe de pesquisadores estava nas ruas de São Paulo fazendo uma pesquisa sobre o brincar na cidade quando veio a pandemia.  E a gente percebeu a mudança de rota necessária, assim como o planeta, e teve de se reorganizar. O fenômeno do brincar é o nosso tema e onde ele estava naquele momento? Dentro de casa. Então a gente teria que buscá-lo. E aí nasce uma nova fase do Território do Brincar, algo que a gente nunca tinha feito, que era ter essa conversa de forma online com os familiares das crianças. A gente teve conversas e a partir disso surgiu então o desejo de fazer uma série de podcasts e um documentário, que está sendo lançado agora.

Blog: Essas famílias achavam que esse brincar em casa era possível? Claro que as crianças brincam independentemente da gente, mas muitos têm uma impressão de que elas brincam só se a gente proporcionar grandes eventos e espaços, principalmente ao ar livre. Como é que meu filho vai se divertir dentro de casa se eu não posso levá-lo à pracinha?

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Renata: A gente teve duas conversas com as famílias. Inicialmente, no começo da pandemia, as famílias ainda estavam vivendo esse 'susto' do que estava acontecendo. E o que foi relatado? Que antes da pandemia a vida era muito mais focada para fora de casa do que para dentro, há vários relatos de que a casa era apenas um espaço para dormir e isso apareceu em todas as classes sociais, em famílias de diferentes realidades. Isso foi um fato bastante relevante, porque o brincar era visto como algo feito fora de casa. Então ficou muito claro que, em um primeiro momento, as famílias não conseguiam criar um ritmo, então havia crianças que iam dormir duas horas da manhã, acordavam meio dia, almoçavam quando dava. E aí foi um tempo até que isso se estabelecesse.

Quando a gente perguntava sobre como era o brincar, ouvia 'ah, eu vi meu filho brincando de casinha'. E aí a gente perguntava 'como é essa brincadeira, me conta mais, o que é que ele faz, como é que ele faz isso?' e as famílias foram dizendo 'puxa, eu não sei, na verdade eu nunca olhei muito bem, eu sei que eles brincam, eles ficam lá falando, mas eu não sei, não me apropriei do brincar dos meus filhos ainda'. Então essa foi uma nova descoberta, do que é de fato que eles brincam. E aí os pais começaram a perceber que estar junto, na cozinha, cortando cebola, cortando maçã fazia parte da brincadeira, parte de um cotidiano que parecia ser bastante simples e genuíno começa a ser contado por esses pais, inclusive, como brincar. E aí as famílias começam a entender duas coisas: que é preciso ter ritmo e que as coisas mais simples do cotidiano fazem parte do brincar das crianças. Tomar banho, isso foi relatado como um tempo de muitas brincadeiras juntos. Entrar no chuveiro, na banheira e ficar ali brincando com potinhos, bichinhos, não era visto como parte do que as crianças brincam efetivamente.

Foram revelações que foram vindo e a gente pode observar as recorrências, ou seja, o que acontecia numa casa também acontecia noutra casa, em outra casa. Essa brincadeira de casinha, por exemplo. A gente observou que imediatamente após o começo da pandemia muitas crianças ficaram envolvidas em construir cabanas, em cantinhos, em se vincular em seus bonequinhos, seus bichinhos, ou seja, tinha um desejo de acolher ainda mais para dentro, ver aquele momento recolhido dentro do seu imaginário.

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Blog: O que mais esses pais descobriram?

Renata: Coisas que a gente não esperava como, por exemplo, os pais começaram a contar como as crianças começaram a ler muito mais livros, além de relatos de que elas estavam dançando também. A dança mostrava que tinha um corpo que estava precisando de um pouco de leveza. E essa relação com a tecnologia também foi um tema muito forte, na grande maioria das vezes essa fala dos pais vêm com uma certa dose de culpa, eles não se sentem confortáveis em ter que deixar as crianças usando de tecnologias e telas o tempo inteiro. 'Eu não gosto, mas não tem jeito!', dizem. Muitas vezes a fala vem com essa nuance.

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E para as crianças, principalmente as mais novas, foi muito complicado. A gente tem vários relatos, por exemplo, de que a tecnologia era o único canal de comunicação que as crianças tinham com familiares e amigos que ficaram distantes e como era difícil para eles conseguir fazer essa comunicação, ou seja, eles tinham que trazer o corpo para falar com o avô, com a avó que estava longe, então tinha que brincar junto, não adiantava só ficar diante da tela e falar porque essa não é uma forma de se comunicar que a criança tem, de sentar e conversar com o outro, parado.  Vários pais contaram sobre as brincadeiras que os avós, os primos, os tios faziam com as crianças para que pudesse existir uma relação social. Então a gente percebe o quanto o corpo é um fator primordial, principalmente nos menores, e as crianças vão encontrar uma possibilidade de experenciar isso, mesmo que seja com telas.

Blog: E as dores dos pais de terem os filhos 'só' brincando em casa, eles trouxeram?

Renata: Sim, há muita angústia dos pais, inclusive nos pais de filhos únicos isso vem com mais força, porque brincar é no coletivo, ele é social, então isso traz várias angústias em vários sentidos.

Blog: Então as famílias onde há irmãos eles conseguem se virar porque há o outro com quem trocar?

Renata: Sim, e isso foi interessante, houve muitos relatos de que no brincar com os irmãos as crianças fizeram novas descobertas que estavam muitas vezes só no mundo de fora, então a relação com o irmão era menor se comparada com que o que eles tinham agora. Então houve essa redescoberta de brincar com os irmãos, houve vários relatos bem interessantes de crianças que quiseram a voltar dormir juntas no mesmo quarto, que já tinham se separado, que quiseram dormir inclusive na mesma cama. E também muitas brigas, não há como ser muito romântico nessa relação não, eles têm brincado muito, mas também brigado bastante, esse relacionamento vem também com essa carga, a própria intimidade que se tem com o irmão gera esse lugar também.

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Blog: Você disse que não dá para a gente ser romântico em relação ao que foi esse primeiro ano de pandemia das crianças, né, mas quando você conheceu essas famílias, ouviu suas histórias, você conseguiu enxergar alguma beleza em coisas que aconteceram?

Renata: Eu confesso que eu consegui enxergar uma resiliência que existe no brincar. E eu explico o que é isso: o brincar é a força que a criança tem para se adequar a qualquer condição que ela esteja vivendo. A gente vai vendo o brincar se amoldar na vida da criança a seu modo, sabe? Nesse momento, óbvio, ele se amolda a uma coisa mais restrita, mais frágil até. Mas a gente ainda vê o brincar como uma vida, uma força. Eu não gostaria que nunca mais, em hipótese alguma, a gente passasse pelo que a gente tem passado e pelo que as crianças têm vivido atualmente. É uma restrição sim - de gestos, de possibilidades, de ousadias, de vivências, principalmente no mundo de fora, na natureza. Os corpos estão um pouco mais quietos e isso não é o que se espera para um desenvolvimento saudável de uma criança, não é, os relacionamentos sociais estão muito menores, o que também é um dano que a gente não sabe dimensionar até onde isso vai, eu acho que a gente vai demorar anos para entender o que isso está causando nas nossas crianças. Mas por mais restritivo que seja o momento, as crianças encontram caminhos e aí você vê como é forte o brincar, porque ele está lá. De alguma forma está lá. Pulsando. Eu gosto sempre de dizer que o brincar mostra o 'sim' da vida. Ele vai deixando evidências de que por mais doloroso que é o contexto, em algum momento ele brota como um 'sim'.

Blog: Brincar é resistência então?

Renata: É. Pode ser visto por esse aspecto sim. Sem dúvida.

 

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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