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Opinião|'Não há nenhuma relação entre vacinação e autismo', garante médico da Sociedade Brasileira de Pediatria

Números do Ministério da Saúde apontam queda da vacinação em todo o País

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Foto do author Rita Lisauskas
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Quem participa de grupos de mães e pais nas redes sociais sabe. Existe um crescente movimento antivacina que vem ganhando força em todo o mundo, inclusive no Brasil, e que está sendo apontado como um dos principais responsáveis por um surto de sarampo na Europa.  No Brasil, os mais recentes números divulgados pelo Ministério da Saúde mostram uma queda recorde na imunização das crianças em todo o País. As vacinas que apresentam os piores números são a a tetraviral, que previne doenças como rubéola, caxumba e catapora, com apenas 63,3% de crianças imunizadas até o momento e a da hepatite A, com 66,3%. Já a vacina da poliomielite, que previne a paralisia infantil e que em 2011 era tomada por 100% das crianças teve um desempenho muito abaixo do esperado: apenas 7 em cada dez crianças foram imunizadas em 2018 contra a doença, mesmo o Brasil tendo um dos mais melhores programas públicos de vacinação do mundo, que oferece os principais imunizantes a todas as crianças gratuitamente.

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Segundo o Dr. Renato Kfouri, Presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, as fake news sobre os "perigos" das vacinas não são recentes, porém não deixam de ser preocupantes. A entidade, inclusive, lançou uma campanha chamada #Maisqueumpalpite para difundir informações sobre esse e outros assuntos baseadas em evidências científicas e não em "achismos". Entre as notícias falsas que são propagadas, lembra, estão a de que a vacina tríplice viral pode causar autismo. "Essa informação nasceu baseada em uma fraude científica", garante.

Blog: Esses números divulgados pelo Ministério da Saúde são surpresa?

Dr. Renato: Esse é um fenômeno que a gente vem observando não só aqui no Brasil, mas em vários lugares do mundo. Existe uma falta de percepção de risco, já que as vacinas fazem as doenças desapareceram tanto que a população e o próprio profissional da saúde, que lida com essa população, acaba não sentindo a necessidade e a urgência de vacinar esses pacientes, porque acabam não vivenciando casos de doenças que existiam no passado como a paralisia infantil, sarampo, tuberculose, coqueluche e tantas outras doenças que foram controladas pela vacina.

Blog: Então essas doenças desapareceram por causa da vacinação?

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Dr. Renato: Sim. Muitas doenças desapareceram, mas nem todas foram eliminadas. Algumas como a poliomielite e a varíola foram extintas das Américas, mas outras apenas diminuíram sua incidência. No Brasil, certamente o índice de vacinação não é o ideal, basta ver o surto de sarampo no norte do país que só existe porque parte da população realmente não está protegida.

Blog: A gente vê algumas discussões nas redes sociais de mães e pais que deixam de vacinar com medo das reações às vacinas e também pelo medo de que a imunização possa causar a doença que se propõe a proteger. Isso realmente é possível de acontecer?

Dr. Renato: Esse medo das reações causadas pelas vacinas ficou muito claro durante a campanha de vacinação da febre amarela no país. As pessoas ficaram preocupadas com os efeitos adversos e acabaram se questionando se valeria a pena ou não se vacinar. O que é preciso deixar claro é que esses efeitos colaterais são muito raros e quando eles ocorrem são muito menos graves do que os prejuízos causados pelas doenças que as vacinas se propõem a proteger. Quem tem medo da vacina da febre amarela devia estar mais preocupado com a febre amarela, que mata mais de 40% dos indivíduos que pegam a doença. Quando a vacina dá reação temos um caso grave para cada 400 mil, 500 mil doses aplicadas. Os efeitos colaterais mais graves são muito raros, extremamente raros, e muito menos importantes e frequentes e do que os problemas causados pela doença. E em relação à vacina da gripe existe uma clássica associação feita pela população, algo infundado, de que a vacina causa a gripe. Isso é impossível. As vacinas não causam as doenças. Ninguém vai tomar uma vacina contra a meningite e pegar meningite, gripe, coqueluche. O objetivo delas é a prevenção.

Dr. Renato Kfouri, presidente do departamento de imunização da Sociedade Brasileira de Pediatria Foto: Estadão

Blog: As vacinas são seguras?

Dr. Renato: Extremamente seguras. Para serem licenciadas passam por longos estudos envolvendo milhares de pessoas para que se comprove e demonstre sua segurança. E mais do que isso: depois que essas vacinas entram no mercado existe um sistema de vigilância de efeitos colaterais que continuam atestando a segurança e a eficácia delas. No caso da vacina do HPV, por exemplo, já existem mais de 300 milhões de doses aplicadas pelo mundo, mais de 2 bilhões de crianças já tomaram a vacina de rotavírus, ou seja, são números expressivos que continuam mostrando que as vacinas são extremamente seguras. Não tem que ter medo da vacina não, tem é que ter medo é da doença.

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Blog: Existe um medo de que algumas vacinas causem autismo, inclusive uma pesquisa publicada na revista científica The Lancet, uma das mais importantes revistas científicas internacionais, já levantou essa hipótese o que fez com que pais e mães deixassem de vacinar seus filhos.

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Dr. Renato: Infelizmente essa associação entre vacinação e autismo levantada no passado pelo médico Andrew Wakefield traz várias consequências para o controle do sarampo, especialmente na Europa. Esse  médico inglês publicou, em 1998,  uma pesquisa sobre uma possível associação entre a vacina tríplice viral e o desenvolvimento de autismo nas crianças. Ele afirmou que tinha acompanhado essas crianças e publicou esse "achado" em uma das mais famosas revistas internacionais, a The Lancet, e com isso trouxe uma enorme repercussão, as pessoas começaram a recusar se vacinar.  Cerca de 5 a 7 anos depois dessa publicação os estudos dele foram melhores investigados e comprovou-se que tudo era uma enorme fraude científica. A The Lancet desmentiu a pesquisa e retirou essa publicação dos anais. Infelizmente o estrago estava feito, a população estava apavorada e esse tema sempre volta à tona apesar de o assunto ter sido bem esclarecido. Muitos outros estudos foram feitos na sequência para comprovar que não há nenhuma relação entre vacina e autismo, temos pelo menos 4 ou 5 publicações importantes comprovando isso.  Esse é um exemplo de que, no passado, as tais fake news já existiam e colaboraram para que houvesse uma baixa na procura pelas vacinas. Essa diminuição da cobertura vacinal e a desconfiança da população podem ter impacto no controle da doenças. A Europa vive uma história de sarampo bem diferente do que encontramos nas Américas, onde a doença está controlada. Mas lá há surtos na Itália, na Áustria, na França, Inglaterra, Portugal, na Espanha, muitos países registram óbitos por causa dessa doença, que no Brasil está bem mais controlada.

(Em 2004, o jornal britânico Sunday Times revelou que Wakefield falsificou dados clínicos em troca de dinheiro dos advogados dos pais de crianças autistas que queriam processar os produtores da vacina. Nessa ocasião, 10 dos 12 autores do artigo retiraram os seus nomes da publicação. Uns anos mais tarde, outra investigação feita pelo British Medical Journal revelou que Wakefield recebeu dos advogados o equivalente a cerca de 435 mil libras e que das 12 crianças analisadas cinco já tinham problemas de desenvolvimento antes de receberem a vacina e outras três nunca tiveram autismo.) 

Blog: Na esteira dessa insegurança com as vacinas, muitos pais escolhem qual vacina vão aplicar e quais não irão dar. Há risco nessa prática?

Dr. Renato: O calendário de vacinação visa proteger o bebê, que é o mais vulnerável, exatamente por causa de seu sistema imunológico mais imaturo, de adquirir várias infecções e de forma grave. As pneumonias, o sarampo, as diarreias, as infecções de ouvido, as meningites são muito mais frequentes e graves nas crianças pequeninhas do que no jovem e no adulto, por exemplo. E por isso a gente precisa respeitar o calendário e vacinar as crianças no tempo apropriado. Você atrasar essa vacina é ignorar o momento ideal de vacinar essa criança e isso é um equívoco muito grande, deixa a criança desprotegida no momento de sua maior vulnerabilidade. Os calendário é desenhado de maneira proteger a criança contra aquelas doenças mais importantes para aquela faixa etária.  E não há nenhuma base científica para você recomendar uma vacina e outras não. Todas são igualmente importantes, os calendários do Ministério da Saúde são extremamente completos, os calendários da Sociedade Brasileira de Pediatria complementam com algumas vacinas, então é importante que os pais fiquem atentos, conversem com o seu pediatra, para que a caderneta de vacinação da criança fique sempre em dia.

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Blog: Tem diferença entre tomar as vacinas no posto de saúde, que é direito de todos os brasileiros, e tomar as vacinas na rede particular?

Dr. Renato: A maioria das vacinas que existem para a prevenção da doença nas crianças estão disponíveis no posto de saúde de forma gratuita. Nosso programa de imunizações é um dos mais completos do mundo, protege as crianças contra 17 doenças e também oferece vacinas importantes aos adultos e aos idosos. A saúde pública gratuita tem que focar o olhar em grupos mais prioritários e elege os grupos mais vulneráveis. Nenhum país do mundo dá vacina para todas as idades e para toda a população e nem haveria vacina disponível para vacinar 200 milhões de pessoas do nosso país. O papel das clínicas particulares é disponibilizar vacinas para a população geral, para os que não estão incluídos nos grupos de maior risco cobertos pelo SUS. Além disso sempre vão existir vacinas novas, que estão em desenvolvimento, e que chegam primeiro às clínicas particulares antes de serem incorporadas no programa nacional de imunizações. Então hoje na clínica privada serve para disponibilizar vacinas para as pessoas que estão em outra faixa etária, para oferecer vacinas de meningite para crianças mais velhas, a de HPV para mulheres que não são mais adolescentes e por isso não estão contempladas no calendário dos postos, e por aí vai. Algumas vacinas que podem trazer benefícios para toda a população e podem ser aplicadas em qualquer indivíduo, então as clínicas privadas servem para disponibilizar essas vacinas para a população em geral.

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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