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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|Mas eu também não gozei

'Autoficção' conta a história de uma mulher que não sabe quem é o pai do seu filho

Foto do author Rita Lisauskas
Atualização:

 Foto: Pixabay

'Essa aí é mãe solteira', ouvi minha tia dizer uma vez, apontando uma vizinha que estava grávida e que não era casada, um pecado no auge dos anos 80. Hoje em dia já não se mistura mais maternidade com estado civil, por isso é mais comum ouvir a expressão "mãe solo" - o que não significa que a mulher que engravida sem um companheiro não seja julgada. Se o parceiro virou as costas depois da descoberta da gestação, essa mulher ainda pode contar com uma certa condescendência da sociedade e da Justiça, verdade seja dita, mas se ela fez sexo com mais de um homem e não tem certeza de quem é o pai da criança o tratamento será outro.

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"De um lado há a santa, essa mulher grávida santificada. Do outro lado a puta, a mulher que é 'a promíscua, a vagabunda, a devassa'. Que contradição existe nesse corpo grávido?", pergunta a atriz e escritora Letícia Bassit, 30, mãe de Pedro, 1, e autora do livro "Mãe ou Eu também não gozei", lançado pela Editora Patuá.  A obra, uma 'autoficção', segundo a autora, conta a história de uma mulher que não sabe dizer quem é o pai do seu filho e ao procurar um dos homens com quem se relacionou para falar sobre a possível paternidade, ouve a frase: "esse filho não é meu, eu não gozei". E mesmo a mulher "também não gozando", não tem como dizer que o filho não é dela, "porque tem uma criança crescendo em seu útero", pontua.

Blog: Como surgiu a ideia de escrever o livro?

Letícia: Quando eu me descobri grávida, em 2017, em uma gravidez nada planejada, muito caótica, foi um susto. Eu nunca tive o desejo de ser mãe, tinha até uma certa aflição da maternidade e uma série de questionamentos. E quando eu me vejo grávida nessa situação, nesse contexto muito solitário e muito difícil, começo a escrever. Não com o intuito de publicar um livro e sim em uma tentativa de elaborar o que eu estava sentindo, elaborar a minha dor.

Só que aí eu comecei a escrever mais do que eu estava imaginando. E, na época, estava fazendo algumas oficinas como atriz e apresentei um pouco do material já escrito. E daí as pessoas começaram a comentar, perguntar se eu nunca tinha pensado em escrever um livro ou desenvolver algo em dramaturgia. Aí eu comecei a olhar aquele material e falei 'nossa, realmente, tem alguma coisa aqui'. O edital do ProAc (Programa de Ação Cultural de São Paulo) estava aberto, eu me inscrevi no de dramaturgia e fui contemplada. E eu fiquei sabendo quando estava na maternidade, no dia que meu filho nasceu. E daí eu pensei 'agora não é mais a minha dor, não é mais uma visão terapêutica da coisa', eu tenho que dar uma forma para esse monte de textos que estão aqui. Nesse processo eu gestei o meu filho e também o livro, que ficou pronto muitos meses depois e chegou da gráfica no dia do aniversário de um ano dele, quando eu estava cantando 'os parabéns'.

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A atriz e escritora Letícia Bassit, autora do livro 'Mãe ou Eu também não gozei'. Foto: André Cherri

Blog: O livro me pareceu bem pessoal. É uma autobiografia?

Letícia: Não, é uma autoficção. Eu deixo claro isso para todos que me perguntam 'ah, mas é tudo verdade o que está lá?' ou 'então é tudo mentira?'. E agora eu estou refletindo junto, enquanto falo com você: qual é a importância de saber o que é verdade ou mentira quando a gente avalia uma obra? Existe muita metáfora, poetização e teatralidade no livro, até porque se trata de dramaturgia, é um texto que pode ser encenado por qualquer artista. Nem tudo o que está lá é verdade e nem tudo o que está lá é mentira. E isso é importante dizer: a história parte de uma experiência pessoal, mas isso é só o mote do livro. O meu intuito foi poetizar e politizar essa experiência.

 

'Mãe ou Eu também não gozei', Ed. Patuá, pág 82.  

 

Blog: A protagonista engravida e não sabe quem é o pai do seu filho.

Letícia: Sim. E esse tema me interessa muito, porque faz pensar. O intuito é que as pessoas reflitam sobre o que significa uma mulher engravidar e não saber quem é o pai da criança no sistema em que a gente vive. O que significa para uma mulher dar à luz o filho que, metaforizando, não tem pai? Mas há um pai, só que ele some. Uma ausência de pai, uma dúvida de pai, um Brasil sem pai. Os últimos números divulgados pelo IBGE em 2017 mostram que no país existem cerca de 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai no registro. E entre 2005 e 2015, o número de famílias compostas por 'mães-solo' subiu de 10,5 milhões para 11,6 milhões. O que significa essa ausência paterna? Então a gente fala de uma mulher que engravida e sai em busca desse pai, mas eles não estão interessados nem um pouco nesse filho. Existe um sumiço, ainda mais quando se trata de uma mulher que engravida dessa maneira em uma sociedade cada vez mais conservadora. De um lado há a santa, essa mulher grávida santificada. Do outro lado a puta, a mulher que é 'promíscua, a vagabunda, a devassa'. Que contradição existe nesse corpo grávido? Só essa imagem já gera muita reflexão.

Blog: Eu posso inferir que quando você fala no livro sobre como é difícil lutar pelo reconhecimento da paternidade de um filho é algo pelo qual você passou?

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Letícia: Sim, sim. É a situação pela qual estou passando. Hoje eu me sinto impotente, eu me sinto realmente paralisada porque é como se minha situação atual e o sistema, a estrutura judiciária, não conseguissem dialogar. Não há possibilidade. É de alguma maneira uma forma de 'provocar' o Judiciário. Se eu entro na Justiça, se eu resolvo lutar pelo reconhecimento de paternidade, eu estou 'provocando' o Judiciário, pelo que as advogadas me falaram. Uma mulher engravidar e não saber quem é o pai do próprio filho e lutar pelo reconhecimento de paternidade no Brasil, no sistema que a gente vive, é quase impossível.

Ilustração de capa: Juliana Piesco Foto: Estadão

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Blog: Você acha que acaba tendo uma 'gradação' nesse julgamento da mulher? Se ela entra na Justiça e indica o pai, tudo bem. Se ela entra na Justiça e não indica, ou aponta um, dois ou três possíveis pais ela é vista como 'alguém pior'?

Letícia: Exatamente. E imediatamente ela é julgada. Se eu entro na Justiça e indico um homem como pai do filho e o cara se recusa a fazer o DNA, automaticamente a Justiça declara esse homem como o pai. Existe a presunção da paternidade e o nome dele vai para o registro da criança na hora. Agora como é que funciona quando essa mulher aponta dois homens como possíveis pais? Por que se é por presunção, o juiz não pode presumir que são os dois. Então existe a possibilidade, pelo que eu ando conversando e pesquisando, de não se concluir o caso, 'a responsabilidade é tua', ou de se escolher um desses homens, se os dois, no caso, se negarem a fazer o DNA. Escolher esse pai segundo características físicas ou segundo os meus relatos. Do que a gente está falando? Não me interessa dinheiro, pensão, embora eu saiba que a pensão é para a criança e não para a mulher, minha busca é pela verdade, pela origem, pela identidade. Que sistema é esse? O que mais me interessa é essa reflexão que eu estou tendo com o meu livro e com a performance de que esse sistema é falho que não está interessado na mulher.

"Antigamente, a mulher que mantivesse relações sexuais com mais de um homem tinha o direito ao reconhecimento da paternidade de seu filho negado. Embora não estivesse escrito em lei, essa era uma tese construída pela defesa dos homens e que funcionava e levava o nome em latim de "exceptio plurium concumbentium". Ou seja, havendo suspeita de mais de um pai, o juiz declarava todos os suspeitos isentos de reconhecer a paternidade. Era uma forma de punir a mulher por exercer sua liberdade sexual. Ocorre que essa tese, ao resolver punir a mulher, acabava por prejudicar principalmente os filhos. Atualmente, por se entender que o direito à verdade é um direito fundamental da pessoa, e também por ser uma tese discriminatória, a "exceptio plurium concumbentium" não é mais aceita. Apesar disso, ainda existem advogados que levantam essa argumentação na defesa de seus clientes."  (O trecho "Exceptio plurium concumbentium" é de Ana Paula Braga, advogada especializada em direito daa mulheres, citado na página 77 do livro.)

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A atriz e escritora Letícia Bassit. Foto: André Cherri.

Blog: E o nome do livro '"Mãe ou eu também não gozei?"

Letícia: Quando eu fiquei grávida e eu comuniquei que eu estava grávida, a resposta do homem foi "esse filho não é meu, eu não gozei". E eu respondi, "mas eu também não gozei". O homem tem o direito de transar, faz filho, mas também sente no direito de 'abortar'. Eu não tenho como dizer que esse filho não é meu 'porque eu não gozei', porque eu tenho um útero, a criança cresce dentro de mim.

Blog: Como o livro virou performance?

Letícia: Eu, como atriz, senti uma necessidade de compartilhar esse material com o público. Chamei um baterista amigo meu, o Felipe Aranha, e a Juliana Piesco, que é uma parceira desse o início do projeto e que tem uma pesquisa de projeção vídeo mapping. Juntei essas linguagens com trechos de um documentário ainda em fase de produção pela Coletiva Arenga Filmes, que desde que eu fiquei grávida está me filmando para cima e para baixo por causa desse tema. Rolou uma minitemporada no Sesc, com mesa de debates. Dia 24 e 25 de agosto eu lanço oficialmente o livro em São Paulo, no Teatro de Contêiner, na Luz, com a apresentação da performance poética.

Blog: Escrever sobre isso, 'performar' esse processo te ajudou de alguma forma?

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Letícia: Nossa, eu não sei como é que seria se eu não fosse artista, se eu não tivesse ferramentas para a elaboração dessa experiência, a dor da ausência, da solidão, do medo de ter um bebê crescendo dentro de mim. Foi uma questão de sobrevivência, ainda é. Eu me salvei. Mas essa história não é só minha. Muitas mulheres foram caladas, muitas mulheres não conseguem elaborar, não têm as ferramentas de elaboração artística, de consciência política e poética. Eu não tinha consciência do que era ficar grávida nessa situação. Hoje eu tenho. No livro e na performance eu falo pelas minhas ancestrais, mas também falo por mulheres que estão na periferia na mesma situação que eu e que não conseguem falar sobre o assunto porque têm vergonha. Esses casos existem, mas muitas mulheres desistem de lutar porque o sistema é contra elas. Eu estou dando voz a muitas mulheres e é isso o que me interessa enquanto artista.

Mãe ou Eu também não gozei

Dias: 24/08 e 25/08 Sábado às 20h e Domingo às 19h (lançamento do livro dia 25 a partir das 15h) Teatro de Contêiner Mungunzá R$:pague o quanto achar justo Duração: 80 min. Classificação: 18 Anos

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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