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Opinião|Caí no golpe do congelamento em banco privado do sangue do cordão umbilical do meu filho

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Quatro anos depois do nascimento do Samuca, recebo um boleto "salgado" para pagar: Cerca de 800 reais. É a anuidade pelo congelamento do sangue do cordão umbilical dele, rico em células tronco embrionárias. O ano em que ele nasceu, 2010, o procedimento era caro - cerca de seis mil reais - e uma "sensação" entre pais e mães. Depois de uma luta para engravidar e duas fertilizações in vitro na bagagem, guardar as células tronco do meu filho parecia uma poupança para a saúde dele. O apelo era grande. As empresas que fazem a coleta e o congelamento tinham quiosques dentro dos hospitais (acho que ainda têm) e esse tipo de pesquisa estava no centro das discussões mundiais - já se sabia que as células tronco do cordão são muito especiais porque têm a capacidade de se transformar em células de todos os 216 tecidos que formam o corpo humano. Seria possível criar em laboratório órgãos para transplante, curar diabetes, infarto, lesões de medula, Parkinson, Alzheimer. As possibilidades eram grandes e passei os últimos quatro anos lendo e me informando para descobrir que.... talvez nada disso seja viável nas próximas décadas.

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Em 2013, ou seja, três anos depois do nascimento do meu filho, soube que a Anvisa lançou uma cartilha sobre os "mitos" de congelamento de cordão umbilical: No Brasil, entre 2003 e 2010, 45.661 unidades de cordão umbilical foram armazenadas em bancos privados, mas apenas três foram utilizadas para transplante autólogo, ou seja, do próprio doador. "Segundo dados da ANVISA, em cerca de 20 mil amostras de sangue de cordão congeladas, só uma será utilizada em transplante até os 20 anos de idade do paciente. E mesmo nestes casos, você poderia recorrer à própria medula óssea para obter essas células. Para armazenar por 20 anos, quanto se gastará? O congelamento para uso do próprio doador está muito longe de ser um seguro de vida, como os bancos privados parecem sugerir", explica o médico hematologista e hemoterapeuta, doutor em ciências médicas pela Faculdade de Medicina da USP, Murilo Chermont Azevedo. "O argumento é que as umbilicais são mais precoces e que assim poderiam ser mais facilmente reprogramadas - mas isto não tem comprovação científica até o momento", completa.

E mesmo que esse material fosse necessário - no caso de uma (bate na madeira) leucemia, o uso do próprio material genético da criança para um transplante é questionado pelos médicos: "Já se sabe que em casos de leucemias, provavelmente exista uma tendência genética presente desde o nascimento, portanto o transplante de células de cordão da própria pessoa não é considerado como um tratamento curativo. A melhor opção, se houver indicação de transplante de células-tronco, continua sendo a utilização de um doador compatível", explica o médico. "Esse material poderia ser útil em casos ainda mais excepcionais, nos quais existe alto risco de doenças genéticas para anemias hereditárias, como a talassemia e a anemia falciforme", completa. Samuca não tem nenhuma dessas doenças, ainda bem.

Faço ao médico, que ainda não tem filhos, a clássica pergunta de quem fica encurralada e sem argumentos para defender a própria escolha: "E se fosse seu filho? Você não congelaria o sangue do cordão umbilical dele?" A resposta me surpreende, já que o hematologista se mostrou até aqui contrário à prática. "Armazenaria somente na rede pública, para uso em quem precisasse". A chance desse material ser útil a alguém aumenta se toda a população tiver acesso a ele. As redes nacionais podem ser interligadas às internacionais, aumentando as chances de salvar a vida de alguém. Mas como o sangue do cordão do Samuca está em um banco privado o único que pode usar é meu próprio filho ou a nossa família. Avanço no questionamento: "Doutor, você descartaria esse material se estivesse no meu lugar?". "Eu tentaria doar a um banco público até a última possibilidade.Se não fosse possível, descartaria sem crise de consciência. Afinal, a essa altura você já sabe que ele não tem uma dessas raras doenças genéticas e não haveria utilidade em caso de leucemia", garante. O desafio agora é esse: tentar doar a um banco público. O próprio médico acredita que isso talvez não seja possível, porque não há como saber as condições de coleta ou mesmo se estavam sendo armazenadas adequadamente. Ninguém fiscaliza isso. Mas e se...? E se??? Fico pensando que uma revolução na medicina pode acontecer da noite para o dia. Não sei o que fazer. A anuidade deste ano já está paga, ou seja, tenho mais um ano para decidir o destino desse tesouro que, por enquanto, não pode deixar ninguém rico. Apenas me deixa, a cada ano, 800 reais mais pobre.

 

Leia também: "Os médicos não fazem mais parto normal nem em suas esposas", afirma uma das parteiras mais engajadas do Brasil 

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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