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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|A gente tem que se meter quando vê, sabe ou desconfia que uma criança está sendo agredida

Levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria aponta que 100 mil crianças morreram vítimas de agressões na última década

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Foto do author Rita Lisauskas
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 Foto: Banco de imagem

Você acharia aceitável um idoso tomar um tapa no rosto dentro de uma loja em um shopping center? Aposto que não, tenho certeza que interviria para acabar com a agressão. E o que faria se ouvisse gritos da vizinha, vítima constante de violência de seu companheiro? Chamaria a polícia, certo? E se percebesse que uma criança conhecida tem apanhado e sido vítima de maus tratos? Denunciaria, interviria ou é daqueles que acreditam que 'bater educa' e que 'cada família cuida do filho' de um jeito?

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O Brasil é um país extremamente violento para as crianças e não sou eu que digo isso: levantamento feito pela Sociedade Brasileira de Pediatria apontou que, na última década, mais de 100 mil crianças e adolescentes de zero a 19 anos morreram vítimas de agressões - duas mil vítimas fatais de agressão tinham menos de 4 anos de idade, uma média de 200 crianças mortas da mesma forma que o menino Henry Borel, 4 anos, no Rio de Janeiro. (A Polícia suspeita que a criança tenha morrido depois de ser submetida pelo padrasto a uma sessão de torturas, com o conhecimento da mãe.) "Veja bem: 83% dos agressores de crianças de zero a 9 anos são pai e mãe. Depois vêm os avós e os tios. E a agressão não tem nada a ver com a condição social, etnia, religião e escolaridade dos pais. Acontece em todos os níveis, acontece também dentro de uma família de classe média-alta", explica o médico Marco Antônio Chaves Gama, presidente do Departamento Científico de Segurança da Criança e do Adolescente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Com a pandemia, a situação está pior, afirma. "A criança não pode ir à escolinha, não pode fazer as consultas regulares no posto de saúde, não pode encontrar com o coleguinha que mora um pouco mais distante, ou seja, ficou mais indefesa", completa.

Blog: É assustador saber que mais 100 mil crianças mortas por atos de violência na última década. Esses números surpreenderam vocês? Como foi feito esse levantamento?

Marco: Esse levantamento é baseado no Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) e no DATASUS (Departamento de informática do Sistema Único de Saúde), ou seja, são dados compilados de informação governamental, são sites do governo que estão à disposição. E esses números estão subnotificados, o problema é muito maior. Tem subnotificação não só da mortalidade, mas também das agressões, a coisa é muito maior do que isso, mas como é um assunto pouco conversado, pouco divulgado, as pessoas se assustam um pouco, mas já há anos que a gente está lutando, falando sobre isso, que essa violência está crescendo todos os anos.

Blog: Por que vocês acham que a violência contra crianças e adolescentes é tão grande no Brasil?

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Marco: São vários os fatores, a gente tem que entender o contexto todo para compreender melhor esse problema. A violência é uma doença para a criança, é uma doença crônica - tem história clínica, exame físico, diagnóstico, tratamento, encaminhamento e exames. E por que é um processo crônico? Por que essa violência em grande parte é familiar, por exemplo: um pai que agride um filho durante muitos e muitos anos. Ele sobrevive, vira adulto, tem filhos e faz o mesmo com o filho dele. Então é um processo que vai se passando dentro de um núcleo familiar.

E a criança não nasce violenta, ela vai sendo moldada e nas primeiras fases da vida ela nem entende que aquilo é violência, porque ela não conhece outra coisa. E depois de um certo tempo ela fica ainda mais confusa porque o adulto fala que ela recebe a violência porque fez tal coisa, a criança começa a achar que merece aquilo, é um processo complicadíssimo no pensamento dela. E como há um alto índice de impunidade dos agressores essa situação vai se persistindo, a violência só vai aumentando.

Blog: Bater em criança já foi algo socialmente aceito, hoje em dia a gente sabe que é crime, tem a lei 'Menino Bernardo'. Mesmo assim a gente ouve muitas frases dizendo que 'cada um sabe como educar o filho', que 'ninguém tem que se meter'. A gente tem que se meter quando vê, sabe ou desconfia que uma criança está sendo agredida?

Marco: Tem. Tem que se meter. As sequelas dessa violência podem ser físicas, a criança pode ficar aleijada de um braço, de uma perna, de um olho, a violência pode trazer alterações no desenvolvimento, essas crianças muitas vezes não se desenvolvem de tanto mau trato, não têm desenvolvimento cognitivo, muitas não aprendem a ler, a escrever e algumas ainda ficam com um retardo mental, então é uma produção de sequelas gravíssimas que quanto mais demorar a intervenção, mais chance a criança tem ou de ficar sequelada ou morrer. Então tem que interromper.

Essas crianças vítimas de violência frequentes, quando chegam a uma certa fase da adolescência saem de casa. E durante todos esses anos ninguém salvou elas, ninguém: nem a sociedade, nem a escola, nem o serviço de saúde, ninguém. E elas se transformam, têm uma alteração psiquiátrica na formação de seu perfil que faz com que desconheçam o afeto e sejam muito agressivas. E aí alguns cometem esses crimes bárbaros que a gente escuta todos os dias - tem um assalto, a pessoa entrega tudo mas mesmo assim o assaltante vai lá e mata. Mata porque tem necessidade de prazer, para se divertir, porque se transformou nesse processo. Então quando a gente interrompe isso tem chance de deixar essa criança sobreviver, mas também se tornar um adulto com uma qualidade e uma produtividade boa.

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Blog: Então as sequelas dessas agressões continuadas não são apenas físicas, mas também psicológicas.

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Marco: Vamos supor: uma criança que fica aí cinco ou seis anos sendo vítima de agressões diárias, isso faz que ela vá se deteriorando, ela vai perdendo muito as relações, algumas têm dificuldade até de falar, não sabem falar direito, então isso vai provocando uma deterioração psíquica e cognitiva, alterações importantes. Algumas crianças vítimas de violência ficam às vezes mais tristes, não querem brincar, ficam mais prostradas, mas têm aquelas que têm uma postura diferente, ficam muito agitadas, agressivas e muitas vezes (seus sintomas) são confundidos com os de doenças psiquiátricas que na verdade elas não têm. Isso é uma manifestação que estão dando conta de fazer por questão da violência que estão recebendo. E quando esses meninos são tirados desse núcleo familiar violento a agressividade acaba, a agitação acaba, eles vão se transformando novamente na hora que recebem carinho e atenção. Então é muito importante interromper (esse ciclo de violência).

Blog: Muita gente ainda acha que não dá para educar uma criança sem bater.

Marco: Ter filho tem dois aspectos: o reprodutivo e o do cuidar. Criar e educar implicam muita dedicação e muita doação desde o dia que nasce. Para ter filho, realmente, tem que pensar muito: porque é dedicação, carinho, ensinar. Ele não nasce pronto. O problema é que as pessoas têm um filho e querem que ele seja do jeito que elas acham (que ele tem que ser), do jeito que elas querem (que ele seja). Não é bem assim. A criança tem uma essência, tem o jeito dela. Então o grande problema disso é que muitos adultos não têm paciência nenhuma para educar e querem que a criança aprenda com uma série de 'desensinamentos' paradoxal - quando ela fala determinada coisa tem hora que bate palma e tem hora que chama a atenção, por exemplo, se a criança fala um palavrão quando não tem ninguém acha 'engraçadinha' e quanto tem alguém leva uma palmada ou um tapa na boca. Isso para a criança é muito confuso, a criança aprende na tentativa e erro.

Então o problema é que ensinar dá trabalho e muitos não têm essa paciência - e nisso a gente vê como a coisa está cada vez mais terceirizada. Na pandemia, que a terceirização ficou interrompida, as relações ficaram péssimas, é muito comum ouvir 'eu não aguento essa criança, não sei mais o que eu faço com ela' e por quê? Porque (o filho) estava terceirizado ou através das mídias digitais ou da escola e da creche. Como tem que ficar em casa descobriu que o filho dá um certo trabalho e não contava com isso. Educar dá trabalho no início, mas depois que você educa a coisa anda fácil.

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Blog: O caminho de bater é como se fosse o 'caminho mais rápido' porque o do diálogo demanda mais tempo, disposição e energia dos pais e cuidadores.

Marco: O 'caminho' do bater não ensina, ainda acham que 'dor de chorar' ensina, mas não ensina ninguém. O que ensina é o afeto, a paciência, o carinho. Então essa ideia vem se perpetuando 'ah, porque meu pai bateu em mim, minha mãe bateu em mim'. Você vai perpetuar isso? Por que se você pergunta 'como era a sua conversa com seu pai, com sua mãe?' ou 'que diálogo que você tinha?', a maioria não tinha nenhum. E hoje em dia a gente está tendo um problema que é essa dissociação entre pais e filhos, chega em um determinado momento que vai ficando cada vez mais distante e essa distância vai começando cada vez mais precocemente com essa terceirização, então o filho vai perdendo a referência, o que é pai, quem é pai ou quem que é mãe. O adulto também já se distanciou tanto que consegue chegar a esse nível de violência porque aquela afetividade já diminuiu em virtude daquele modelo de que tá todo mundo sempre atrasado, não tem tempo para nada.

Blog: A pandemia tem deixado muitas famílias em isolamento social, ou seja, muitas crianças estão sem acesso à escola, que muitas vezes tem um olhar importante sobre essa criança. Você acredita que isso pode aumentar a violência contra elas?

Marco: A gente acredita não, aumentou. Aumentou e aumentou muito, e as crianças ficaram cada vez mais indefesas. Veja bem: 83% dos agressores de crianças de zero a 9 anos são pai e mãe. Depois vêm os avós e os tios. E a agressão não tem nada a ver com a condição social, etnia, religião e escolaridade dos pais. Acontece em todos os níveis e esse caso do Rio de Janeiro (do menino Henry Borel, 4 anos) acontece também dentro de uma família de classe média-alta. Então essa situação só piorou porque a criança não pode ir à escolinha, não pode fazer as consultas regulares no posto de saúde, não pode encontrar com o coleguinha que mora um pouco mais distante, ou seja, ficou mais indefesa.

E o que é importante: a denúncia não tem que ser na certeza não. Na hipótese, na dúvida, na suspeita que aquela criança está sendo vítima de violência pode ser feita a denúncia ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público, isso quando você acha que as lesões são leves. Lesões graves a denúncia pode ser feita na delegacia, Ministério Público e no Conselho Tutelar, e a denúncia é uma ferramenta importante e a pessoa que vai denunciar não precisa de identificar, mas tem que saber o nome da criança, o dos pais e o endereço, para poder haver a investigação.

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Se você acredita que alguma criança ou adolescente esteja sendo vítima de maus tratos, disque 100 e denuncie.

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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