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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|A 'escola sem partido' tem partido

Não ensinem sobre ditadura, comunismo, camisinha e cavalos-marinhos

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Atualização:
 Foto: Estadão

Mal tinha terminado a apuração que a elegeu Ana Caroline Campagnolo deputada estadual por Santa Catarina e ela já estava nas redes sociais propondo que alunos de todo o Brasil 

filmassem professores que fizessem em sala de aula comentários contrários à eleição de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil, algo que ela classificou como "manifestações político-partidárias ou ideológicas". A historiadora (!) abriu um "canal informal de denúncias" na internet e pedia que vídeos e informações fossem repassados para o seu número de celular com o nome do docente, da escola e da cidade. Pela mesma rede social, um ex-aluno da agora deputada Ana Caroline">" target="_blank" rel="noopener">divulgou fotos da ex-professora mostrando que ela, enquanto docente, costumava dar aulas vestida com a camiseta de Jair Bolsonaro. Como se não bastasse, Ana também sempre gostou de postar fotos com imagens de armas em punho, algo que deixaria qualquer pai e mãe de aluno chocados.

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A 'escola sem partido' defendida por Ana e por muitos outros sem relação alguma com a Educação tem partido, e ele é de extrema-direita. Seu objetivo é criminalizar o pensamento, mas não qualquer pensamento, apenas os que são contrários aos de seus idealizadores. Falar sobre comunismo? Doutrinação. Mas o comunismo é uma ideologia política e socioeconômica, assim como o capitalismo, aparece em todos os livros escolares que se prezem. Tire esses livros de circulação, oras. A coisa anda tão esquizofrênica (perdão aos que sofrem de esquizofrenia) que, mês passado, discípulos dessa tese que pretende transformar os professores em amebas, como bem definiu Frei Betto em um artigo, conseguiram realmente tirar uma obra lançada há 27 anos da lista de material dos alunos do 6.º ano do Ensino Fundamental do tradicional Colégio Santo Agostinho, do Rio de Janeiro. "Meninos sem Pátria" escrito por Luiz Puntel, ilustrado por Jayme Leão e parte da histórica coleção Vaga-lume, era lido há anos pelos alunos mas se tornou perigoso assim, de uma hora para outra. E sobre o que fala essa obra tão perigosa? A ditadura. Aquela que aconteceu e também está em todos os livros de história. Fácil. Vamos tirar mais essa obra de circulação.

O livro, que já está na 23.ª edição, conta a história de uma família que precisa deixar o Brasil depois que a redação do jornal em que o pai trabalha é invadida (vamos fazer um bolão de quanto tempo levará para que isso volte a acontecer?). Após uma sequência de ameaças, a família vai para o exílio e os meninos contam como que é viver a infância e a adolescência longe de casa. Fim. A escola se dobrou à histeria, perdendo uma chance de ouro de propor um debate sobre a obra com a presença desses pais amedrontados, quem sabe do autor e dos filhos que são personagem do livro. A ignorância venceu.

Mas a incivilidade é espaçosa e a Caixa de Pandora foi aberta, deixando escapar todos os males do mundo. As universidades não puderam protestar contra o fascismo às vésperas da eleição, porque isso denotava propaganda política contra um dos candidatos (então ele é fascista?) Não se pode ensinar os adolescentes a usarem camisinha, porque isso estimularia o sexo. Não pode explicar que existem pessoas que são transexuais, porque isso poderia ensinar as crianças a terem dúvidas sobre o próprio gênero. Já há professores com medo falar para as crianças de onde vêm os bebês ou de explicar aos adolescentes sobre o perigo da Aids. Então sobre o quê os professores podem falar então, se a tal "Escola sem Partido" for aprovada? Sobre assuntos "não polêmicos". Raiz quadrada está permitida. Adjuntos adverbiais também, assim como a polinização promovida pelas abelhas. Mas atenção, professores, evitem falar sobre os cavalos-marinhos, porque são os machos que engravidam e dão à luz seus filhotes e isso pode ser classificado como "ideologia de gênero". Que tempos sombrios.

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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