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Retratos e relatos do cotidiano

Ser mulher no país que executou Marielle

Quando a sobrevivência parece lucro

Por Ruth Manus
Atualização:

 

Ser mulher nesse país é dormir toda noite em dúvida. Dúvida sobre quem vai ser a próxima, se eu ou se outra. Porque sempre temos certeza de que alguém já está na mira, seja do tiro, da faca, das mãos ou dos olhos. Sempre há uma próxima. Eu ou outra? Não sei. Ambas doem.

 

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Ser mulher nesse país é ver o anoitecer como ameaça e as sombras como inimigos. É acostumar-se à insegurança e, num dado momento, quase se convencer de que a responsável por escapar é você. É julgar-se alguém de muita sorte por seguir viva e sem grandes sequelas, quase como um soldado que volta guerra.

 

Ser mulher nesse país é ouvir frequentemente o discurso que tenta nos convencer de que as coisas estão melhorando, que o machismo está diminuindo, que nossa luta é histeria, que estamos exagerando com essa conversa. Que temos que ser pacíficas, que falar manso, que esse nosso grito não leva a nada.

 

Ser mulher nesse país não ser dona de absolutamente coisa nenhuma. Do próprio destino, do próprio corpo, da própria vida. É saber que homens velhos e encardidos, a serviço de interesses escusos, votam o destino do nosso corpo. E que outros homens definem nosso salário. E todos se julgam no direito de decidir se somos ou não dignas de algum respeito.

 

Ser mulher nesse país é saber que somos pouco, exatamente por sermos mulheres. E que somos menos se formos negras. E menos se formos pobres. E menos se formos lésbicas. E menos se estivermos grávidas. E menos se formos protagonistas de alguma luta. E que quanto menos você é, mais a sua cabeça vale.

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Ser mulher nesse país é um teste de sobrevivência. Proteger seu corpo. Suas ideias. Seus filhos. Seu trabalho. Todo santo dia, tentar sair ilesa em meio às agressões que chovem em forma de palavra ou em forma de dor física. Ilesa ninguém sai. Algumas saem mais feridas, outras menos. Até que uma simplesmente não sai.

 

Ser mulher no país que executou Marielle é saber que não somos livres. Que estamos simplesmente em fuga. Fuga constante de fuzis- verdadeiros ou fictícios- que estão sempre presentes para nos lembrar que em silêncio talvez estejamos mais seguras. Para reforçar que eles estão de olho em cada um dos nossos movimentos. E que quanto mais alta for a nossa voz, mais esses fuzis se aproximarão das nossas cabeças.

 

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