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Crônicas do cotidiano

Segundas intenções

A primeira intenção é a embalagem; a segunda, a receita do conteúdo. É assim que nossas ações são postas nas prateleiras logo que saem quentinhas dos fornos do nosso cérebro. Igual à Coca-Cola, ao sorvete, às bolsas, aos carros e a tudo o que existe, as ações humanas são produtos nascidos a partir de uma matéria-prima - não, resolver chamar a menina mais gatinha da sala pra sair não veio assim do nada, nem rolou das escadas do Olimpo a pedido de nossas preces.

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Por Ricardo Chapola
Atualização:

Em estado bruto, ações  são chamadas de ideias, assim como o vinho, na forma como veio ao mundo, é conhecido como uva; o pão, como trigo; a gasolina, como petróleo. Entendamos direito o ciclo:

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As ações em seu estado bruto, portanto ideias, são invisíveis a olho nu já que estão diluídas no ar. Aspiradas para dentro das maquinarias cerebrais, as ideias passam por um processo industrial: sofrem manipulações, rearranjos, decantações, reprocessamentos, aquecimentos, resfriamentos. Pronto? Mais ou menos, temos um semi-produto chamado de intenção (mais precisamente a segunda, já que a produção da primeira é de competência de um outro departamento, o das embalagens, do outro lado da fábrica).

As segundas intenções são a força motriz dos nossos atos, o esqueleto de uma postura, a verdadeira explicação dos porquês de termos preferido o assim do assado. Ninguém sabe, além do próprio mestre cuca, a receita de seu melhor prato, como também ninguém sabe, além do próprio mentor, as intenções que compõem sua ação. Na verdade, os apreciadores tanto do prato quanto da ação só pensam que conhecem, porque vão pela aparência: acham que aquelas bolinhas pretas no meio do arroz (será que era arroz mesmo?) eram azeitonas, ou que aquele impávido convite para a menina significava só um cineminha sem amassos.

Arroz com azeitonas e cineminha meia boca vêm do outro lado da fábrica. São eles as embalagens, cientificamente conhecidas como primeiras intenções - aos leigos, em outras palavras, a tal capa do livro, objeto em que se baseiam nossos tantos julgamentos capengas, pai do preconceito.

O que eles não sabem é que, assim como para os livros, existe beleza além de um rótulo bem feito. Se não violarmos as embalagens, bisbilhotarmos a gororoba lá de dentro, a gente vai continuar não sabendo se o garoto realmente tava só a fim de um cineminha meia boca, ou se queria mesmo era tascar um beijo daqueles na top model da sala. Tá ai a verdadeira beleza.

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