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Crônicas do cotidiano

Denúncia

As araras que maltratam meus ouvidos depois dos 7 gritos de gol da Alemanha

Por Ricardo Chapola
Atualização:
 Foto: Estadão

Ilustração: Felipe Blanco

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Estou possuído neste momento por algo maior do que eu. Peço então que leve isto em consideração ao término da leitura: tenha certeza de que não era aminha maior intenção fazer esta denúncia. Estive movido só pelo torpor dos 7 gols da Alemanha, mas daí veio a Argentina, ganhou e logo estava lá bebendo Quilmes na final da Copa do Mundo, bem no lugar onde, sem dúvida, nos vimos um dia.

 

As araras do prédio ao lado não seriam meu maior problema atual se o Brasil se classificasse. Sua cantoria amazônica seria incorporada ao hino cantado à capela naturalmente, dando a ele a brasilidade que faltou para a seleção dentro de campo. Ao perder, foi como se agulha saísse do prumo na vitrola. De repente, a única coisa que as margens plácidas do Ipiranga começaram a ouvir não foi mais o brado retumbante de um povo heroico, mas a gritaria irritante das duas araras confinadas em algum apartamento da rua Duílio. Sim, duas, que por ironia do destino e infelicidade geral, reeditavam na sacada ao lado uma disputa pau a pau entre Brasil e Alemanha no gogó. Primeiro atacava a azul, amarela e verde: "rrrrrrrrrrrááááááá". Logo em seguida, respondia a vermelha, com mais força: "rrrrrrrrrrrrrrrrrááááááááááá"!!!

 

No começo tinha raiva dos bichos. Muitas foram as tardes frustradas pelas tentativas de abafar o berreiro ararense com as músicas do iPod. Tentamos de tudo, dos tenores de Pavarotti a "Stayin Alive", do Bee Gees, no último volume, mas não adiantou e nem sei se adiantaria. Fui obrigado a abortar a missão, pois o síndico começou a reclamar do volume do som em casa. Até agora estou sem entender como há quem prefira aquele tropé selvagem a disco music.

 

Todo o rancor passou dos animais de estimação para os seus donos, no princípio vistos por mim apenas como exotéricos, entusiastas da natureza. Hoje, depois dos fogos, depois do sufoco contra o Chile, a Colômbia, sempre sob a sinfonia infernal das araras, passei a vê-los como criminosos da mesma periculosidade que argentinos cantando "decime que se siente" bêbados pela Vila Madalena. Visse qualquer um pelas ruas do bairro, hermano ou o vizinho passeando com suas aves, partiria para a ignorância, cego pela ira, surdo pelo cazzo dessas duas algozes bicudas.

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A cólera não diminuiu depois que encontrei na internet durante minhas buscas por respostas mais racionais que o exoterismo de pessoas como as do prédio ao lado salvam espécies do buraco negro da extinção. Bonito, devo confessar, porém nem o altruísmo a essa altura do campeonato me convence mais de que, para o bem da humanidade, é preciso dizer sim à liberdade das araras.

 

Espere tudo dos vizinhos, sejam de parede, teto, ou sacada. São o novo Kinder Ovo da vida moderna: a gente nunca sabe a surpresa que eles nos reservam. A minha foi um estorvo que não calculo por quanto tempo terei de aturar. As denúncias pelo rádio fracassaram. Restou apenas este espaço, onde encarecidamente faço o meu apelo: salvem-me das araras urbanas, please!

 

Meu álibi é o mesmo que vou adotar daqui em diante para tudo: ninguém é obrigado a tomar o vareio da Alemanha e ainda ver a Argentina se dar bem na mesma semana. Muito menos ainda a levar uma surra de sete, enquanto hermanos chupam a laranja e você se lasca com duas araras querendo ganhar as coisas no grito, que nem foi o Brasil esse tempo todo.

 

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