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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Viver sem criar expectativas

Dizem que é melhor viver sem criar muitas expectativas sobre o mundo – e as pessoas. Mas viver sem expectativas pode ser profundamente entediante.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Convocaram-me às pressas e subitamente; eu já dormitando sobre o computador. Olhei para o céu em busca das horas, mas o céu em São Paulo é sempre enganoso. Impermeável, não conhece mais do que duas estações, dia e noite, que mesmo assim se confundem. O céu paulistano: envernizado, coberto por uma fina camada fosca que confunde matizes, apaga estrelas. Só pode ser escuro ou claro, noite ou dia.

Era noite.

Quando o telefone toca, em hora dessas, meu coração dispara e solavanca como um carrossel desgovernado. Preparo-me para tragédias. Na última vez em que me ligaram assim, sem cerimônia, no telefone fixo, meu irmão estava pela morte. Há sempre um gosto de morte no telefonema que nos arranca daquele preâmbulo azul de sonho, quando as primeiras ideias começam a se misturar a cores e sons, quando a primeira palavra começa a se formar na consciência já sem controle de si. Desde a adolescência, nunca mais uma surpresa de amor, nunca uma bailarina querendo dançar. Apenas notícias de doença, morte, ameaças. Com sorte, trotes.

Convocaram-me às pressas porque o Pedro, sempre tão amável, ameaçava se suicidar. Atirara-se com todas as carnes num relacionamento confuso e, durante o Carnaval, testemunhou a traição. Passara meses alimentando expectativas, muitas expectativas. De ser enfim correspondido, então casar, quem sabe um filho; até cogitavam mudança para os Estados Unidos. Enfim, sonhar.

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Eu achava tudo aquilo estranho, mas, parvo, também achava bonito. Ah, que belo o Pedro apaixonado, falando em se casar. Conhecera a menina havia quatro meses. Mas já tinha tantos planos, e tão detalhados e vastos, que o mais frequente era perguntarem "há quantos anos vocês estão juntos".

Mas nós, pequena turma de bravos, apenas repetíamos o mantra anti-expectativas: cuidado com as expectativas. Crie cabras, mas não crie expectativas. Um dia de cada vez. Uma vez cada dia. Em grupo, eu apenas concordava com a sabedoria do grupo, acenando que sim. Ninguém sabe o amanhã. Sozinho, em casa, dormitando sobre o teclado, invejava. Os amores que eu narrava, ele vivia. Dia a dia.

Qualquer um sabe que viver é melhor do que sonhar. 

Mas, também, ninguém quer fazer sombra ao amigo apaixonado, e os dias seguiram triunfalmente alheios à nossa opinião: à minha inveja secreta, que talvez fosse a inveja de todos, e aos conselhos cautelosos. Crie serpentes venenosas, não crie expectativas. 

Indiferente a mim, a você, à internet e ao mundo, ele as criava. Enredava-se em saborosas fantasias de festas, brindes, flores, viagens, buquês, lingeries. Era imensamente feliz com isso. Ela não demonstrava o mesmo entusiasmo, mas, de certa forma, assim como nós, acenava e sorria.

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Então o flagra, então o fim. 

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Encontro Pedro desmoronado na mesa de bar. Seus olhos fundos, seu espírito opaco. Não derramou uma lágrima. A bem da verdade não havia ameaçado se suicidar, isso foi intuição dos amigos. Não teria força para esse projeto, que, como todos sabem, é duríssimo. Estava apenas desconsolado, inconsolável. Não tinha mais expectativa nenhuma, logo vimos. De nada. Amor, trabalho, amigos, dias de sol, banhos de chuva, passeios, viagens, prêmios, prazeres fúteis. Nada. Apenas nos deu a razão: é melhor viver sem grandes expectativas. Sem expectativas, corrigiu-se. Nenhuma expectativa, reiterou.

E assim viveu Pedro, sem mais expectativas. A vida é a vida é a vida. A substância da vida em suas mãos, a materialidade da vida, o corpo de tudo.

Tornou-se um homem substantivo. 

Nos distanciamos. Alguma coisa na presença dele me incomodava. Pedro não era mais um substantivo próprio: era comum. Pedro de pedra. Pedro de pavimento. "A vida é o que vejo. Dá o que dá. É o que é."

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Assim tocou a carne de todas as coisas. Eu, fraco, afastei-me.

Que homem triste, eu pensei. Um homem sem expectativas. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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