Foto do(a) blog

Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Viver para ganhar

Quando ganhar dinheiro passa de atividade-meio (para uma boa vida) a atividade-fim: a vida, precificada?

PUBLICIDADE

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

PUBLICIDADE

» A fantasia coletiva dos brasileiros é vencer na loteria. Simples, direta, sem grande substância filosófica. Vencer na loteria - de preferência a acumulada -e um belo dia acordar com 20, quiçá 40 milhões de reais na poupança. Nunca mais fazer nada.

Então as portas do mundo estariam abertas. Nunca mais o felizardo haveria de se preocupar com qualquer coisa que fosse. O espírito de Deus adormece numa pilha de dinheiro, onipotente. Saúde, amor, amizade, realização pessoal, profissional, espiritual: o pacote mega-sena inclui tudo.

Eu também nutria essa fantasia. Até hoje, volta e meia me pego sonhando acordado. O que eu faria com 40 milhões de reais? Mas, limitado que hoje sou, no campo da imaginação perdulária, dificilmente passo de "viajar o mundo", "mudar para uma casa com jardim e biblioteca" e "comprar tempo para escrever".

À medida que os aniversários passam, a lista encolhe. Com 15 anos eu saberia torrar milhões em dias. Com o dobro disso, mal saberia por onde começar. Envelhecer (bem) é não entender. É despojar-se das certezas. É, se bem conduzido o experimento, espantar-se mais e mais.

Publicidade

Entre as coisas que desaprendi a entender, no início da envelhescência, está o dinheiro; o apetite de acumular. Obviamente agradeço o tostão de comida, casa, saúde, estudos, viagens e pequenas indulgências - tortas de chocolate, capuccinos e sessões de cinema. Ademais, seriam bem-vindos os ingressos aos shows além do meu orçamento atual (David Gilmour, Jethro Tull, Pearl Jam e uma longa lista de etc.).

Valorizo os centavos, abstraio os milhões.

Em algum momento cheguei a ficar feliz com isso, com a redução das ambições monetárias, vislumbrando aí a trilha da paz espiritual: a libertação do desejo. Se você tem vinte anos e se cobra diariamente a conquista do primeiro milhão de reais antes dos 30, sabe do que estou falando. Se você completou 30 e já não está nem aí com isso, somos irmãos. 

Mas é claro que um desejo vai sendo substituído por outros dois, e assim seguimos. Se não tenho como meta o milhão, tenho outras ambições, talvez mais inatingíveis ainda, porque abstratas, inquantificáveis. Saber, conhecer, expressar, sentir, perdoar.

Diante disso, como me espantam os adultos que ainda acham que mais é mais, que menos é menos.

Publicidade

Na TV, acompanho, pasmo, as gentes de sucesso anunciando produtos (que desconhecem) com sorrisos amarelados no rosto. Um Buddy Valastro, conhecido em metade do mundo, com a avidez do garoto atrás do primeiro milhão. Alex Atala e caldo de carne engarrafado. Xuxa e seu xampu. Turma da Mônica e seus nuggets. Eu me pergunto, sem falsa ingenuidade: por quê? Que diferença faz, na conta deles, embolsar mais 100 ou 200 mil reais? Que seja: mais 500 mil, um milhão? Por que se submeter, até os ossos, a essa engrenagem desumana?

Por que chancelar produtos que mal conhecem em troca de um dinheiro que certamente não usarão? Quando muito é suficiente? Quando mais é supérfluo?

Nos meus 50 metros quadrados na Pompéia, nada sei da necessidade de acumular capital, não entendo em que momento a atividade-meio (para uma boa vida) passa a ser atividade-fim (a vida).

Se pudesse, eu teria uma casa com jardim. O jardim eu povoaria de árvores frutíferas e cachorros.

Nos fins de semana, leria meus livros favoritos sob a sombra das pitangueiras. «

Publicidade

 

______________________________________________

Siga Males Crônicos no Facebook.

(Clique em "obter notificações" na página)

Atualizações todas as segundas-feiras.

Twitter: http://twitter.com/essenfelder

Publicidade

______________________________________________

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.