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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Um segundo a mais

Por imprecisão da vida ou por precisão excessiva dos relógios atômicos, ganharemos um segundo a mais de vida na virada do mês de junho. E neste um segundo cabe o mundo.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Na virada de 30 de junho para 1° de julho, silenciosamente, centenas de astrônomos em todo o mundo ajustarão seus complicados aparatos científicos, seus preciosíssimos relógios atômicos, para que o último minuto do último dia do mês tenha 61 segundos de duração.

Sim, um excepcional minuto com 61 segundos.

A justificativa, dizem os entendidos, é que há um descompasso entre o tempo da natureza e o tempo dos homens. A Terra gira de maneira dita "lunática", afetada pela gravidade da Lua e do Sol, por terremotos, maremotos, erupções - afetada pela vida, enfim. Por isso, não é de pontualidade, digamos, britânica.

Já o relógio atômico, instrumento paranóico, é tão preciso que nem em 300 milhões de anos atrasaria um único segundo. Seu funcionamento é dito "dramático", inflexível, absoluto, preso a um intrincado sistema de regras.

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O choque entre uma Terra lunática e um relógio dramático dá nisso. De tempos em tempos, já que não é possível parar a Terra, param-se os relógios. Ainda que por um segundo. O objetivo é ajustar a precisão absoluta de nossa alta tecnologia à deliciosa imprecisão da vida, que não se curva nem mesmo ao tempo - ou àquilo que entendemos por tempo, essa inacreditável ficção.

Assim, sem mais nem menos, sem dever nada a ninguém, sem súplica e sem desespero, todos seremos permanentemente agraciados com um segundo a mais de vida.

Passei a semana pensando no que fazer com esse segundo extra, com a dádiva do tempo inesperado.

É bobagem, primeiro achei. O que podemos fazer com um segundo de vida? Nada. Um segundo é uma gota d'água, um grão de areia, uma lufada de vento.

Mas uma gota d'água desperta uma semente, um sopro afasta o cílio que irrita a vista, um grão de areia produz pérola. Quem despreza um único segundo despreza também um único olhar, um único sorriso, um único batimento cardíaco, um único instante que muda tudo.

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Em um segundo cabe um mundo, uma explosão de vida. A decisão repentina, o impulso do beijo, a lâmina do adeus. Em um segundo cabe tudo o que importa: concepção, nascimento, paixão, morte. Sim e não cabem em um segundo. Te amo, não te amo, quero, não quero, vamos, ficamos, chutar castelos de areia, catar uma conchinha, saltar no ar, afundar: tudo em um segundo.

Um segundo lunático, como a vida, vale a pena. 

Um segundo para soprar um fantasma antigo, um segundo para começar tudo de novo, um segundo para começar algo novo. Um segundo, jade, em que nossos olhos se cruzam. Em que se possa dizer eu te amo. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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