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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Tudo muda, menos a gente

Os candidatos mudam seus planos de governo - e prometem a mudança. O clima muda, mudam os ventos. Tudo muda, menos nós, a matéria de que somos feitos.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

 

Eu sou o candidato da mudança. Se você me der uma chance, eu prometo que vou mudar tudo.

Eu mudo a saúde, mudo a educação, mudo o transporte. Mudo tudo o que está aí: mudo de caminho, mudo de rota, mudo de mundo.

Mudo de casa, mudo de carro, mudo de tudo.

Tudo muda o tempo inteiro. Minha vó me dizia: você nunca pisa duas vezes no mesmo rio. O tempo corre e escorre, e na sua passagem toca todas as coisas.

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Fazer jornalismo é difícil por conta disso: a verdade também muda. Nossos conceitos se transformam, e, com eles, tudo à nossa volta.

Como os candidatos, amor, se você me der um voto de confiança, eu prometo que eu também mudo.

Eu nunca mais deixo a louça na pia, eu nunca mais espio as meninas, eu nunca mais deixo a porta do armário aberta nem esqueço o dia do seu aniversário. Eu mudo.

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Mudo a minha maneira de andar na rua, que te irrita tanto. Eu acelero e prometo não parar para esmolar papo com mendigos. Nem fitar flores nos caminhos. Eu paro de fumar, eu paro de beber, eu mudo minha forma de falar, meu jeito de escrever. Abro a gargalhada contida, espalhafato meu discreto estilo de amar, cadencio meus passos de samba, simpatizo com teu partido político, se quiser.

Eu mudo a minha perspectiva também, meu amor, para encerrar esse desdém.

Então você vem? Eu mudo. De mudança em mudança eu me enluto e revigoro, eu me transformo. Então, você vem?

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Mas venha também mudada.

Venha outra, porque daquela velha já estou cansado. Venha com um amor mais contido, com passos mais delicados, com olhos perdidos nas flores dos atravessados. Vem sem amor partidário e sem samba ajeitado, vem falando baixinho e com um copo de uísque e um cigarro. Vem contar as histórias dos pedintes e dos apaixonados, vem de peito aberto, vem vulnerável, vem me falar de Viena e do centro de São Paulo.

Eu mudo se você mudar, então estaremos mudados. Até que, um diante do outro, olhos nos olhos, tenhamos saudade do que éramos, e vejamos que era tudo bobagem.

Tudo bobagem, amor. Nós nos travestimos, empostamos a voz, fazemos romarias, pagamos promessas ajoelhados, fazemos de um tudo para evitar a dor, a dor inescapável. Fingimos que mudamos, e fingimos tão completamente que parece verdade a verdade que a gente sente. A gente finge que muda para driblar uma dor que não muda; uma partida, um luto.

No fundo dos olhos sabemos silenciosamente. A pedra pode ser polida e lapidada, mas não vira outra. A alquimia só funciona nas fantasias, amor, histórias de ninar. Diamantes, rubis, safiras, esmeraldas. Os olhos, mesmo cansados, não mudam de cor.

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O mundo muda, e com ele muda tudo: o rio, o mar, o tempo, a direção dos ventos.

Tudo, menos a gente, a pedra de que somos feitos. As raízes aqui dentro.

 

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Atualizações todas as segundas-feiras.

Twitter: http://twitter.com/essenfelder

Meu romance, Febre, você encontra aqui. 

Um conto fantástico: A guerra das torres.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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