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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Todos nos tornamos escritores

Nunca se escreveu tanto, de tantas maneiras, para passar tantos recados.

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Atualização:

arte: loro verz

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»Eis que a escrita, que andava, digamos, fora de moda desde a invenção do telegrama cantado e das mensagens de áudio no Whats App, renasce. Nunca escrevemos tanto. Convertemos lembretes, listas de mercado, flertes, DRs, desabafos, chistes, piadas, longas discussões filosóficas e textões narcisistas de Facebook em palavra escrita. A primeira coisa que você faz ao acordar é ler: as notificações das redes sociais, as notícias no celular, a agenda virtual do dia. A segunda coisa é escrever. Um bom dia ao grupo do Whats - ou, quem sabe, o relato da desastrosa noite anterior.

Um comentário espirituoso e perspicaz logo às sete da manhã, quantos cliques rende no dia?

"Hoje todos são escritores", me disse um amigo, numa provocação. Queria talvez ferir minha sensibilidade artística.

Mas é verdade. Escrevemos cada vez mais. E, de tanto escrever, sem que nos déssemos conta, fomos sendo seduzidos pela palavra. Queremos, pelas palavras, o reconhecimento do mundo. Quero ser lido, comentado, discutido. Quero que curtam ou critiquem, mas que não passem em brancas nuvens as minhas palavras. Meu desabafo, minha filosofia de rede social. Textões, sarcasmo, ironia; minha crítica ao candidato e meu elogio à gente trabalhadora.

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É realmente um sintoma de que nos tornamos todos escritores. Todos os escritores que conheço, ao menos, têm preocupações mundanas assim: querem ser lidos. Não podendo ser ricos, não podendo governar nem curar doença alguma (a não ser aliviar, quiçá, alguma enfermidade da alma), o escritor quer ser lido.

Mas, se todos viramos escritores, com o livro diário de nossas interações pelas janelas do celular ou do computador, fizemos isso de maneira meio torta. Ficamos com o que há de pior na raça. Ficamos com a ansiedade, o desejo e a insatisfação.

Com o que não ficamos, do escritor? Simples: com a arte. Ou, em termos mais concretos, com a satisfação de ter criado algo belo, um instante de beleza trágica em um mundo que, apesar de já cheio delas, sempre carecerá de mais.

Não ficamos também com o silêncio contemplativo. Não ficamos com o espanto diante do mundano. Pior: não ficamos com o que de fato caracteriza um escritor, que é a leitura: leitura cuidadosa e caudalosa, metódica e desenfreada.

Todos são agora escritores, meu amigo zomba, ainda. Será? Talvez soframos é de uma síndrome do escritor: somos afetados pela afetação deles, por sua angústia mais tola, mas não somos capazes de vislumbrar a grande beleza.

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E nossa filosofia não sabe nem da metade: de tudo o que há entre o céu e a terra.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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