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Opinião|Tipos de turistas

Existem viagens e viagens, e, mais do que o destino, gosto de saber que tipo de viagem as pessoas fazem

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Existem viagens e viagens. Viajar é sempre bom, é o que me dizem, antes de as férias começarem e, com elas, os planos de voo. Verdade.

Verdade, mas existem viagens e viagens.

Você viaja para quê? Acho essa pergunta ainda mais importante do que o "para onde vai?". Quando um amigo fecha as malas, logo pergunto: para quê? Alguns não entendem, de início, e tomam por grosseria, inveja, niilismo afetado. Que nada. É curiosidade legítima, primeiro me pergunto o que nos move, depois, para onde.

Existem por exemplo as viagens de compras, as viagens de fuga, as viagens de romance (solitário ou acompanhado), as viagens meditativas, as viagens de currículo (ou também viagens-de-likes), as viagens de descanso, as viagens de negócios, as viagens gastronômicas, as viagens de aprendizagem... São muitas, muitas razões para viajar. Frequentemente, aliás, elas se misturam: fuga e romance, descanso e gastronomia, compras e currículo.

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Esta última combinação, aliás, define o espírito do tempo. Tenho visto por aí milhares de turistas com sacolas e celulares sempre às mãos. São profissionais nas viagens de compras - sabem de antemão onde haverá as melhores promoções, sabem os endereços das lojas mais baratas ou mais exclusivas, dominam as técnicas do vá de mala vazia e volte de mala cheia, conhecem detalhes das leis de importação e de como dribá-las. Enxergam a viagem como uma oportunidade de fazer compras baratas.

Os turistas de compras são obviamente fáceis de reconhecer. Não é bem o número de sacolas que os define, mas sim a predisposição a passar horas, dias e semanas peregrinando de loja em loja. Dão preferência às maiores magazines, de marcas ausentes no Brasil. Não passam um dia sequer sem pisar num estabelecimento de compras - e, se por força maior o fizerem, tornam-se irritadiços e queixosos. São em sua maioria do sexo feminino, embora o número de praticantes do sexo masculino cresça em ritmo acelerado.

Em geral esse turismo de compras está associado ao turismo de currículo (também chamado de turismo de likes), e quanto a este último não há distinção de gênero. O turista curricular é reconhecível já às portas de sua agência de turismo favorita, onde se fascina pelos pacotes mais insanos. Trinta cidade em doze dias? É com ele mesmo. O importante é rentabilizar a viagem e, a partir de sua lógica de turista de currículo, só faz valer o investimento se extrair de cada real, dólar ou euro um like, uma foto aborrecida para exibir às vítimas de sempre ou uma história pitoresca, não importa quão verdadeira, que lhe permita demonstrar sua superioridade geográfica. É o clássico contador de países: já estive em 35, e você? Neste ano vamos para 18.

No exterior, a maneira mais fácil de identificar o turista de likes é pelo celular, de preferência de última geração, com excelente câmera, que, note o detalhe, está sempre com a lente voltada a si mesmo.

Esse turista fotografa tudo, menos o principal, e tudo com seu rosto em primeiro plano. Coliseu + eu, pirâmides + eu, Van Gogh + eu. Se antigamente o turista de currículo concentrava esforços apenas nos grandes monumentos e outros símbolos facilmente reconhecíveis pelos amigos não viajantes, como placas de aeroporto, hoje, com as redes sociais, ele se delicia com "check-ins" em estabelecimentos obscuros ( é cult) e com imagens cotidianas da viagem - sempre, é claro, acompanhadas de alguma etiqueta geográfica, caso alguém ouse confundir aquele sanduba de Paris com uma baguete da padoca do Tatuapé. O turista de likes é sempre ativo em redes sociais, em especial no Instagram, onde se delicia com descrições estudadamente desleixadas sobre "o lugarzinho" que só ele descobriu, ainda que esteja em 77 guias de viagem de papel e eletrônicos. O importante é parecer cool e levemente desinteressado, mas nunca ingrato. #gratidao. Vê a viagem como oportunidade de angariar seguidores ou impressionar os colegas.

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Existem viagens e viagens, e, mais do que o destino, gosto de saber que tipo de viagem as pessoas fazem. Nas próximas semanas, falarei sobre outros turistas, outras viagens.

E você, por que viaja?«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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