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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|As primeiras vítimas do tempo

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 arte: loro verz Foto: Estadão

 

Fim de semestre é uma época tumultuada. Para estudantes e professores, pesquisas, revisões, entregas, correções e lágrimas reptis ou subreptícias. Para todos, aquele cansaço de meio de ano. O inverno se aproximando. E logo vai ter Copa.

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Há muito a fazer; muitos afazeres. O coelho branco de Alice corre pela casa resmungando: é tarde é tarde é tarde. O coelho de Lewis Carroll é aquilo em que todos, a nosso tempo, nos tornamos - criaturas neuróticas e oprimidas, pulando de toca em toca em busca de algo definitivo. Sempre atrasadas, sempre às turras com o tempo que nos falta.

Mesmo as nossas crianças têm a agenda cheia antes mesmo de completarem dez anos de idade: escola, natação, inglês, balé ou judô, um instrumento musical, ginástica ou futebol, visitas sociais; coisas demais.

Não há agenda para todas as coisas que desejamos, não há dinheiro nem clima. A fonte dos desejos não tem fundo. Não importa quantas desculpas arrumemos: o tempo é implacável e tudo atropela. É pouco dizer "o tempo não para". O tempo, senhor da razão, não se comove com nada. Um deus acima dos deuses, lixando as unhas sobre toda a existência, exigindo sacrifícios diários.

Todos os dias o tempo faz suas baixas. Pessoas chegam atrasadas ao trabalho, estradas ficam congestionadas, casais se afastam lentamente enquanto o tempo ata e desata seus nós. Todos os dias o tempo cobra a sua fatura: a pele inelástica, a curvatura da coluna, a vista embaçada. Quanto tempo você ainda tem? Eis a medida de todas as coisas.

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Mas eu, subitamente, me vi sem tempo. O alarme soava de forma discreta, porém contínua. Aulas, escritos, compromissos, palestras, família, amor, cachorro, reforma da casa: um mundo infinito de afazeres comprimido em tão pouco tempo. Para me manter, para cumprir todas as minhas responsabilidades, eu já fazia sacrifícios, mas não percebia.

O que você corta de sua rotina quando está sem tempo? Você pode começar pelo lazer: o cinema, o teatro, o bar com amigos, a leitura de um livro, ficar à toa vendo a banda tocar. Ou cuidados com a saúde - academia, alimentação, check-ups médicos, terapia, caminhadas. Sono. Quem sabe o corte seja na vaidade: cabeleireiro, manicure, esteticista, massagens, drenagens, caprichos.

O corte sempre é na carne. É difícil cortar fora de si, cortar o volume de trabalho ou as orelhas emprestadas aos amigos ou o tempo gasto nos deslocamentos pela cidade ou nas expectativas que tantos depositaram sobre você. As expectativas, de novo e sempre elas, nos impõem tantos deveres. É tarde, grita o coelho, a caminho de um importante compromisso.

Fosse para dormir mais uma hora, para ler um livro, para namorar um pouco mais, não teria pressa.

Precisamos ser mais supérfluos.

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Quanto a mim, penso que cortei nos últimos meses, oprimido pelo que esperam de mim, pelo meu melhor desempenho, boas notas e tudo o mais, a poesia.

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A poesia é sempre o primeiro item de minha lista de supérfluos, a primeira edificação a ruir. Não me refiro à leitura de poemas, relativamente simples de remediar, mas a uma predisposição à poesia, ao sentido poético. Um olhar vago e desnecessário, de tudo inútil.

Um transbordamento sempre inoportuno e difuso, um marejamento tolo diante do plátano acobreado. Um jogo de palavras que de outro modo jamais se tocariam. Sacrifico um tempo que o tempo não pode tocar, que o tempo não corrói nem compreende. O que me torna humano. Não produtivo, premiável, bonito ou inteligente, não descansado, famoso, popular ou impopular, não mais forte, mais saudável, mais estiloso. Mas humano.

A poesia, ou o olhar poético, é frágil. É a primeira coisa que podemos sufocar para nos tornarmos mais produtivos. Talvez você, meu caro, tenha extirpado a sua ali nos idos da adolescência, quando se deu conta de que o mundo era grande e não mais cabia na janela sobre o mar. Mas ela se vinga de mil maneiras. A poesia sufocada no seu peito fará chorar sem razão, irritar-se sem razão, mandar o mundo às favas e pedir desculpas e arrancar os cabelos e mostrar os dentes e turvar pele e retinas até que tudo fique cinza.

O dia fique cinza, a noite, cinza; as pessoas ao seu redor, o horizonte, a natureza.

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Você.

Seja, pois, supérfluo. Deixe a poesia respirar.______________________________________________

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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