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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Por que me demito

A vida não tem que ser útil, afinal. Por que deveria, e pra quem? A vida tem que ser significativa. E para uma vida ser significativa ela demanda... tempo. Tempo sob o nosso controle: nossos, os donos de nossas vidas.

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»Nesta semana contei para a minha filha que estava me demitindo de um de meus empregos. Esperava uma reação importante, mas nada. Com o ar angelicalmente blasé, quase ingênua, murmurou: bom pra você. Aquela reação tão sutil e espontânea me desestabilizou. Como se dissesse: ei, isso não é tão importante quanto você imagina. Agora me conta: o que vamos fazer hoje? Tem cinema e parque, passear com os cachorros e ir à livraria.

Então minha namorada reagiu exatamente da mesma maneira. É o que você quer? Então que bom, que bom poder fazer o que quer.

É.

O fato de não terem me perguntado por que sair, nem se interessado demasiadamente pelo assunto, primeiro me desestabilizou. Eu já vinha ensaiando há meses o passo, há semanas o motivo. Procurava razões incontestáveis para deixar um emprego em tudo bom, estável, seguro, saudável, tranquilo, agradável, sério, suficientemente bem remunerado, com colegas que admiro.

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- É por causa do PT.

- É que não levo o Aécio a sério.

- É que me sinto num perpétuo episódio de Porta dos Fundos.

- É que o Bolsa Família é tão bom que vou parar de trabalhar.

- É que o trânsito em São Paulo está impossível.

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- É que descobri uma hérnia maldita.

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- É que sinto que não sou mais útil por lá.

O mundo cobra explicações de tudo o tempo inteiro. Nunca fui muito bom com elas, como se vê. A vida é tão complexa. O que me leva a sair de um emprego totalmente incorporado à minha rotina? Nada.

Mas vamos lá, não pode ser nada. Então: sinto que tem algo a ver com utilidade. Mas não com a noção de utilidade que comumente aplicamos ao ambiente profissional: utilidade como sinônimo de produtividade, de relevância, de harmonia. Meu problema, confesso, tem mais a ver com inutilidade. E com tempo. É um movimento a um só golpe de me apropriar melhor do meu tempo e de tornar a vida menos útil.

Desde pequeno ouço que tempo é dinheiro e tenho procurado agir conforme a máxima. Aproveitar cada fresta de tempo para extrair algum ganho. Afinal, quem fica parado é poste, quem dorme no ponto perde o bonde, quem não sua não ganha. Tempo é dinheiro, e, como ninguém, nem o louco, rasga dinheiro, conclui-se que ninguém, nem o louco, deveria rasgar o tempo.

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Mas eu, de pirraça, resolvi rasgar um pouco de tempo e atirá-lo à janela para ver o que acontece.

Disseram-me sempre que é preciso fazer algo de útil com o tempo, o tempo inteiro. Mas esse sentido de utilidade, quando aplicado à vida, tem algo de farsesco. Não importa quantos George Foreman grills nos cerquem, quantos multiprocessadores, quantas airfryers, quantos smartphones, quantos aspiradores de pó robóticos arrematamos pelo televendas. Nenhuma traquitana multiuso, multiútil, disfarça a inutilidade da vida.

Às vezes é preciso rasgar a fantasia e ver o que resta de carne, ainda, sob o pano. Enquanto é: tempo.

A vida não tem que ser útil, afinal. Por que deveria, e pra quem? A vida tem que ser significativa. E para uma vida ser significativa ela demanda... tempo. Tempo sob o nosso controle: nossos, os donos de nossas vidas.

Tempo é dinheiro é uma máxima fora de moda, tão fora de moda quanto o workaholic dos anos 80. E errônea. O tempo não tem preço, embora o vendamos a preço qualquer se isso for necessário. Mas será que é necessário vender todo ele, a todo tempo? Quanto sobra de mim em mim se 80% do tempo sou alugado, e, em 20% dele, flutuo em sonho?

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Não sei como será o futuro, e espero que encontre mais um, dois ou três empregos se assim precisar. Se não precisar, contudo, viverei com menos. Menos dinheiro. Mais tempo. Para nada.

Descobri um pé de pitanga no meu condomínio.

Eu me demiti para ser menos útil. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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