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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Supermercado em tempos de Covid (corônicas de Portugal #2)

Diários da Covid #2. Compras no supermercado.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:

 

arte: loro verz

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»O governo português garante que não há nem haverá uma crise de abastecimento. Em outras palavras, pede que as pessoas não corram aos supermercados e não façam estoques em casa. Como naquelas profecias autorrealizáveis, contudo, as pessoas que preveem gôndolas vazias no futuro esvaziam as gôndolas no presente. Como as prateleiras demoram um pouco mais para serem reabastecidas, já que os mercados funcionam também mais lenta e cuidadosamente, a hecatombe não tarda. A crise futura, imaginada, vira a crise concreta, palpável agora. Ou impalpável, se não houver o que apalpar. Os primeiros produtos a sumir nos mercados da minha região, aqui no sul da cidade do Porto, foram os rolos de papel higiênico e os sacos de farinha (e, curiosamente, de lentilhas). Uma amiga contou que não achou carne bovina em três mercados de seu bairro. Faz sentido, mas, como não costumo comprar carne bovina, eu não havia me dado conta disso. Para minimizar a possibilidade de contágio e ordenar um pouco o frenesi de compras, todos os mercados funcionam com uma espécie de "lotação máxima". Entram dez ou doze clientes por vez. Os seguintes aguardam em fila, do lado de fora, respeitando a distância mínima de um metro entre uns e outros. Fora isso, a experiência de compras me pareceu totalmente normal. Não vi ninguém fazendo estoques (o que me faz indagar para onde foi todo aquele papel higiênico?) e ninguém muito aflito. Dentro do mercado, a cena é exatamente igual às compras pré-crise, exceto pelo fato de as lojas parecerem sempre meio vazias por conta do controle de entrada. Os movimentos são calmos e ordenados. Talvez num exercício íntimo de autocontrole, talvez para evitar esbarrar em qualquer pessoa ou superfície. Não tenho carro e faço sempre as compras à pé - ou de metrô, quando quero ir a uma loja maior, com mais variedade de ofertas, e mais distante. Como andar de metrô parece temerário, tenho optado pelas compras à pé. Praticamente todos levam de casa as suas sacolinhas recicladas, de plástico resistente, e em geral só compram aquilo que conseguem carregar sozinhos. Não vi nenhum casal ou família no mercado, nos últimos dias. Aqui no bairro, uma zona bem residencial, a maior parte dos clientes é adulta ou idosa. É estranho, eu esperava mais caos e barulho nas lojas, e até aqui vi silêncio: tenaz e resignado. Fazer mercado virou uma atividade solitária.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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