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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Sexo sem narrativa (ou: contra a pornografia)

Somos seres de imaginação, e no sexo tecemos a quatro mãos as nossas fantasias. Mas se terceirizamos essa narrativa à pornografia, o que resta de verdadeiro nela?

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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Diante do caos da vida criamos as nossas narrativas. Nas páginas da brutalidade insuportável dos acidentes de trânsito, homicídios, tropeços, partidas, enganos, hesitações, encontros, desencontros, paixões e mágoas, tecemos a nossa história.

A vida será tanto melhor quanto mais sofisticada a narrativa que dela fizermos. Quem dirige a sua vida? Woody Allen, Clint Eastwood, Tarantino, Fellini, Bergman, Buñuel, Walt Disney? Você? Seja quem for o diretor, seja o roteirista.

A vida sem fio narrativo é uma vida vã. Ainda que a sinopse mude a todo tempo, e a cada dia os ventos levem o enredo numa direção, é preciso saber narrar para viver verdadeiramente. Para atravessar o caos inteiriço. Para ter grandeza e ser inteiro, sem exagerar nem excluir.

O sentido da vida pode ser, hoje, um sorriso de menina. Amanhã, quem sabe, todo o dinheiro para a caridade - e uma volta ao mundo em 90 dias.

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Do novelo puxamos nossos fios. Como as Moiras, tecemos, medimos e cortamos as histórias nas horas apropriadas - e, se errarmos, o fio se enovela. Perde o viço, perde o sentido. Quando a narrativa é pobre, a vida é vazia.

Na intimidade, narramos. O poder maior, a libertação profunda, é narrar a própria vida.

E a comunhão fortuita de nossa história com outra história, do que resulta uma novela - ou um novelo - chamamos de sexo.

Porém se o sexo se esvazia de narrativa, o que lhe sobra? Mecânico, torna-se ato, torna-se fato; coito clínico; registro. Pornografia.

A perversidade da pornografia é esvaziar narrativas. Cada vez que acessamos um site pornográfico, entregamos nossas fantasias aos piores roteiristas, talvez por preguiça. Eles contarão arremedos de histórias de violência, submissão, horror e assepsia. Histórias sobretudo mal contadas, sobretudo inverossímeis.

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Nunca se consumiu tanta pornografia no mundo - ou seja, nunca terceirizamos tantos roteiros de fantasias. A maior parte da internet é isto: esquetes menos que sexuais, menos até do que pornográficas. Esquetes penetrativas.

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Pornografia é sexo menos narrativa. Sexo menos fantasia - legítima fantasia, de minha iniciativa. Eis o que a distingue do erotismo, da sedução, da fantasia. Sexo sem toque, sexo sem riso, sem beijo, aperto, amasso, alegria. Sexo clínico, sem contexto, sexo in vitro.

Prefiro cultivar minhas próprias fantasias narrativas.

Umberto Eco já escreveu que a diferença de um filme erótico para um filme pornográfico tem a ver com o tempo. No filme pornográfico, todas as ações extrassexo aconteceriam rapidamente, enquanto o ato em si seria prolongado ao máximo. Completo: o ato em si é desprovido de narrativa, eis a cartilha da pornografia. Traz a narrativa das fantasias pré-fabricadas, exaustivamente encenadas, de enfermeiras, aeromoças, bombeiros, dançarinos. Mas não as narrativas do corpo, das mãos, do que é, enfim, o sexo: alegria.

Pornografia é sexo sem toque. Sem calor, com holofotes.

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Ninguém sabe o que acontece quando a educação sexual de gerações inteiras se dá por meio da internet e da pornografia, atrofiando a imaginação própria, única, misteriosa - algo divina. Quando se aprende desde cedo a terceirizar fantasias para estranhos roteiristas. Quando se tenta reproduzir ângulos só fascinantes para uma lente, para uma câmera.

Para escrever uma narrativa memorável é preciso ter honestidade consigo mesmo, inclusive na cama. É preciso assumir o maior risco de todos: o de ser exatamente aquilo que a gente é. Ser de fantasia, profundas fantasias.

 

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Meu romance, Febre, você encontra aqui. 

Um conto fantástico: A guerra das torres.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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