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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Seja feliz, seja sincero, seja você mesmo (e me obedeça)

Ser você mesmo em geral significa: escute a mim, reverencie a minha sabedoria. Seja você mesmo e me obedeça sem teimosia.

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Foto do author  Renato Essenfelder
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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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»O conselho está em todos os lugares, impresso, expresso, imperativo: seja você mesmo. Faça aquilo que tiver vontade de fazer. Seja feliz.

Sorrio. Ser você mesmo em geral significa: escute a mim, reverencie a minha sabedoria. Seja você mesmo e me obedeça sem teimosia.

Todos os que dizem seja você mesmo têm sua própria receita de você mesmo. Na publicidade animada por saltos de pára-quedas, rodopios sob o sol e mergulhos plasticamente perfeitos em mares translúcidos, ser você mesmo significa parcelar um carro aventureiro em trinta e seis vezes no boleto. Ou usar uma pasta dental que promete dentes perfeitos. Seja você mesmo, use Colgate.

A esposa que diz faça o que te faz feliz pensa faça o que me faz feliz - ou seja, compre-me um presentinho inesperado, surpreenda-me com uma viagem, reserve um jantar romântico na sexta-feita.

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O marido que diz faça o que bem quiser, sem pensar em mais nada, somente em você,confia secretamente estar em primeiro lugar na lista de prioridades. Não entende a felicidade desatachada. Faça o que bem quiser, traga uma cerveja, me deixe jogar bola e mantenha a casa limpa e arrumada.

Os pais que dizem siga seus instintos, faça o que te fizer feliz, rezam silenciosamente para que você preste vestibular para direito, engenharia ou medicina - só em carreiras tradicionais, eles acreditam, é possível ser feliz. Repetem siga o seu coração, mas esperam que você não case com o barbudinho tatuado sem perspectiva de vida. Enfatizam: busque a sua felicidade, mas para tanto julgam imprescindível um emprego estável, casamento, filhos, família.

Os livros de auto-ajuda enfatizam a sua autonomia, mas receitam dez passos para a felicidade.

Os padres pregam o livre arbítrio antes de sacar do bolso a suprema cartilha.

Os gurus da Academia citam Platão e recomendam setenta tratados de filosofia.

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Os novos gurus da academia montam treinos com cinquenta abdominais por dia.

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Os nutricionistas dizem que se pode comer tudo, desde que não se coma nada proibido. Recomendam ovo, proíbem ovo, liberam a clara, mas não a gema, até que reabilitam a gema banida. Elogiam a comida da vovó e dizem que cada um é cada um e que para cada um há uma dieta específica. Siga qualquer uma, preferencialmente a que lhe foi prescrita.

E os poetas, que tudo veem e nada sabem, os poetas que assobiam, os poetas que deliram, os poetas não dizem o que fazer da vida. Apontam o céu, apenas, e o chão, e a pedra, e o peixe. E passarinham.«

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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