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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Resoluções de Ano Novo

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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Durante a faxina de Ano Novo encontro as velhas resoluções. Estão anotadas a lápis em pedaços aleatórios de papel; versos de provas, guardanapos de bar, envelopes de cartas nunca remetidas, folhas avulsas.

Aos 15 anos eu queria muitas coisas - entre elas, que Julia me notasse. Aos 17 eu queria passar no vestibular, aprender a tocar piano e saxofone, publicar um livro de poesia. Aos 18 quis me tatuar, dar a volta ao mundo, mergulhar em Fernando de Noronha, publicar um livro de poesia. Aos 20 já queria ter 15 anos novamente para reescrever as antigas histórias. Aos 23, bastava ser um bom pai. Aos 24, ganhar muito dinheiro. Aos 26, apaixonar-me. De novo.

Conforme os anos passavam, as listas encolhiam. Em algum momento percebi, enfim, que Deus ria-se dos meus planos.

Tudo aconteceu. Como dizia o poeta, tudo caiu em minhas mãos como uma folha de cinco pontas. Mas cada coisa veio ao seu tempo, indiferente às minhas vontades.

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Aos poucos abandonei as resoluções de Ano Novo. Adotei convicções permanentes, tentando melhorar no que me interessava - trabalho, literatura, família, amor - com gestos cotidianos quase invisíveis. Larguei mão de ambições já inacessíveis. Ser concertista de piano clássico, compor como Beethoven e pintar como Chagall? Adquirir fluência em russo e japonês? Talvez numa próxima vida.

Amadurecer talvez seja isso: abrir mão de ilusões sem deixar de sonhar. O que se apreende na juventude se compreende na maturidade.

Ainda há tempo para muito, contudo. E haverá tempo para tudo (essa foi a segunda tatuagem, inspirada num poema de Eliot).

Espano o pó das estantes, o pó das ideias. Existe algo de transcendental na faxina. A faxina é uma meditação profunda sobre todas as coisas e sobre nada, o alinhamento perfeito de corpo, cabeça e cena: estou aqui, agora, separando roupas, sapatos, livros e utensílios que não me servem mais.

A faxina é um triunfo sobre todas as sujeiras - e a minha avó já dizia que em casa suja não se pensa direito (sua versão germofóbica do saco vazio que não para em pé). Basta passar o pano e tudo clareia.

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Passo o pano sobre minhas ideias nubladas e ambições espetaculosas. Minha resolução de Ano Novo será a mais simples. As maiores alegrias, afinal, são inesperadas. Os desejos planejados, calculados, dispostos em planilhas, perdem um pouco de seu brilho quando realizados.

Os melhores desejos são inesperados; são, até, desconhecidos. Passam ao largo da consciência e, quando se manifestam, mantêm o frescor da novidade. Um sabor surpreendente, um prêmio, um gesto não antecipado, o encontro fortuito com o amor da sua vida.

A vida a todo momento nos atropela - ou, fortuita, nos brinda, a depender do ponto de vista. É preciso estar atento e forte.

A minha resolução para 2014 é viver, plenamente (com sorte, com alguma poesia), cada um de seus dias.

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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