Foto do(a) blog

Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Razões para viajar

Viajar é uma experiência contraditória. Vontade de partir, vontade de voltar.

PUBLICIDADE

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

PUBLICIDADE

> Viajar é uma experiência contraditória. Há sempre razões para ir e razões para ficar, e o mundo não cabe numa janela sobre o mar. São tantas as possibilidades àquele que se aventura, de Quixeramobim, no Ceará, a Quina, no Egito, que o mapa não cabe realmente no mapa, em nenhum mapa, assim como não cabem as melhores lembranças em máquina fotográfica.

A gente cresce para o mundo ou o mundo cresce com a gente; as fronteiras se esticam conforme o tempo, o uso do tempo. Desde o quadrilátero do cercadinho enquanto mal engatinhamos até o perímetro do quarto e sala, casa, casa dos avós e bairro, cidade e Estado. País, continente, hemisfério. Mundo.

E, quando a velhice chega, a fronteira enfim transcende o conhecido: a maior viagem começa a ser preparada, e para ela não há guias nem mapas.

Todo mundo viaja, independentemente de grana - e as viagens menos cômodas podem ser as mais potentes: o nascimento, viagem de que só em sonho recordamos, a emigração, o funeral do pai.

Publicidade

Há algo comum, contudo, em todas as verdadeiras viagens: o mistério. Viajar verdadeiramente é sair de si e entregar-se ao mistério. Quando a gente viaja, se aproxima da carne da vida, sai do piloto automático da rotina, da neblina do pensamento condicionado, e se permite estar presente: no ônibus, no metrô, nos parques, praças e avenidas, bares, museus, aqui, agora, de olhos bem abertos.

Viajar é uma experiência contraditória, e este é seu charme e terror. A maravilha, o deslumbre, têm um custo. Perto do sol a pele queima mais, e sair da rotina por poucos dias pode ser suficiente para desmascará-la. Toda rotina tem algo de farsa. Não importa se bem ou mal sucedido, se professor, estudante, jovem, velho, médico ou celebridade.

Melhor que se apegar à farsa, então, é sabê-la, rir-se com ela. Tirar a farsa para dançar um tango argentino. E assim, apenas assim, com humor, de mãos dadas com o bobo, talvez haja redenção para nós.

Quando viajo penso sempre quão bonito seria trazer o sol e a carne da vida à rotina, fazendo do cotidiano uma viagem contínua ao mistério além das aparências. Observar com o mesmo cuidado de Buenos Aires ou Santiago as ruas de São Paulo, os bares de São Paulo, suas gentes, parques e sensações.

Será possível?

Publicidade

______________________________________________ Siga Males Crônicos no Facebook.

(Clique em "obter notificações" na página)

Atualizações todas as segundas-feiras.

Twitter: http://twitter.com/essenfelder ______________________________________________

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.