arte: loro verz
> Viajar é uma experiência contraditória. Há sempre razões para ir e razões para ficar, e o mundo não cabe numa janela sobre o mar. São tantas as possibilidades àquele que se aventura, de Quixeramobim, no Ceará, a Quina, no Egito, que o mapa não cabe realmente no mapa, em nenhum mapa, assim como não cabem as melhores lembranças em máquina fotográfica.
A gente cresce para o mundo ou o mundo cresce com a gente; as fronteiras se esticam conforme o tempo, o uso do tempo. Desde o quadrilátero do cercadinho enquanto mal engatinhamos até o perímetro do quarto e sala, casa, casa dos avós e bairro, cidade e Estado. País, continente, hemisfério. Mundo.
E, quando a velhice chega, a fronteira enfim transcende o conhecido: a maior viagem começa a ser preparada, e para ela não há guias nem mapas.
Todo mundo viaja, independentemente de grana - e as viagens menos cômodas podem ser as mais potentes: o nascimento, viagem de que só em sonho recordamos, a emigração, o funeral do pai.
Há algo comum, contudo, em todas as verdadeiras viagens: o mistério. Viajar verdadeiramente é sair de si e entregar-se ao mistério. Quando a gente viaja, se aproxima da carne da vida, sai do piloto automático da rotina, da neblina do pensamento condicionado, e se permite estar presente: no ônibus, no metrô, nos parques, praças e avenidas, bares, museus, aqui, agora, de olhos bem abertos.
Viajar é uma experiência contraditória, e este é seu charme e terror. A maravilha, o deslumbre, têm um custo. Perto do sol a pele queima mais, e sair da rotina por poucos dias pode ser suficiente para desmascará-la. Toda rotina tem algo de farsa. Não importa se bem ou mal sucedido, se professor, estudante, jovem, velho, médico ou celebridade.
Melhor que se apegar à farsa, então, é sabê-la, rir-se com ela. Tirar a farsa para dançar um tango argentino. E assim, apenas assim, com humor, de mãos dadas com o bobo, talvez haja redenção para nós.
Quando viajo penso sempre quão bonito seria trazer o sol e a carne da vida à rotina, fazendo do cotidiano uma viagem contínua ao mistério além das aparências. Observar com o mesmo cuidado de Buenos Aires ou Santiago as ruas de São Paulo, os bares de São Paulo, suas gentes, parques e sensações.
Será possível?
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