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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Razão e sensibilidade; vantagem e ódio

Ninguém tem mais tempo - ou disposição - para medir palavras.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

 arte: loro verz

 

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» Inglaterra, 1811. Uma jovem e desconhecida autora, sob o pseudônimo "The Lady", publica Razão e Sensibilidade. No romance, duas irmãs, uma identificada com a prudência e o comedimento, e a outra, com o romantismo e a emotividade,buscam a felicidade no amor enquanto negociam com todo tipo de infortúnio.

Brasil, 2015. Um bêbado erra pela Vida Madalena, o bairro boêmio de São Paulo. A mão esquerda segura uma vela, a direita faz uma concha para proteger a chama tímida que mal ilumina seu braço. O inverno é quente, mas as noites são geladas. Pede passagem entre militantes de partidos políticos, militantes da bicicleta, militantes da paz e da guerra, militantes evangélicos, militantes dos militares.

No caminho, trôpego, sem certeza, esbarra acidentalmente em conversas - ouve disputas de palavra, centenas de razões esgrimadas. No fim da noite, o Brasil, conclui, parece um post de Facebook, uma caricatura da caricatura da obra de lady Austen. Ele, que é bêbado, que não tem certeza de nada, que reconhece sua fraqueza e, ocasionalmente, chora,  não consegue achar Marianne, a encarnação do romantismo sincero, da fé nas emoções mais puras. Tampouco acha Elinor, a razão prudente, o bom senso, a fortaleza da ponderação.

Elinor, ou Eleonora, se brasileira, quem sabe nestas alturas teria emigrado para o Canadá - o frio seria difícil de suportar, mas, fora isso, a vida teria mais prudência e civilidade. Marianne, ou Mariana, seria massa de manobra da malandragem - os malandros no poder e os malandros no contrapoder, todos os que manipulam paixões e símbolos para enriquecer.

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A Razão e Sensibilidade da literatura de outrora se traduz como Vantagem e Paixão no Brasil de agora. (A paixão, bem entendido, exercida pelo ódio.) Que falta faz Eleonora, uma luz de bom senso na desolação de impostos e esfolamentos, dos meninos amarrados a postes, do encarceramento de crianças. Que falta faz Mariana, agora, quando a emoção é cínica: todos os heróis da TV são cínicos, todos os presidentes de todos os partidos; os profissionais, os estudantes.

Em 1811, Jane Austen tecia uma crítica aos costumes de sua sociedade e dizia que sem equilíbrio entre razão e sensibilidade a vida se tornava infortúnio. Em 2015, ainda precisamos ler Jane Austen. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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