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Opinião|Rafinha e a desconvocação do Brasil

Não é o Brasil que desconvoca Rafinha, mas Rafinha que desconvoca o Brasil.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Entre uma garfada e outra, olhamos a televisão. Primeiro discretamente, com o canto dos olhos, o gozo de estar fazendo algo proibido durante o jantar. Logo, porém, hipnotizados, sem nos importarmos com juízos de valor ou sermões sobre nossos maus hábitos. Assistimos, descarada e silenciosamente, a televisão.

O cenário é um pequeno restaurante familiar, desses de esquina, que a gente nem chama pelo nome. É o "vamos comer alguma coisa?" de fim de semana. Sem ter de esperar quarenta minutos na fila, sem ter de encarar uma hostess apática. Desses restaurantes que a gente descobre ao lado de casa e que sem mais nem menos passa a frequentar, até que, também sem mais nem menos, isso se torna um hábito. Um Juca's, Silmara's, Antonio's.

Mas algo me perturba neste domingo, e demoro a perceber o que é. A televisão, barulhenta? As notícias, agourentas? O jornal anuncia que um tal Rafinha pediu para ser desconvocado da Seleção Brasileira.

Então tudo faz sentido, com o impacto de um soco no estômago. A decisão do Antonio's (ou Juca's, ou Silmara's) de colocar uma TV imensa e em forte volume bem no centro do salão, matando qualquer possibilidade de conversa entre os comensais. O diálogo sincopado à minha volta. O lateral Rafinha, de quem eu nunca ouvira falar, pedindo uma desconvocação.

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À primeira vista parece inacreditável. À segunda, faz total sentido, dentro de uma lógica absolutamente: germânica. O comentário na TV é de que Rafinha está tentando obter uma dupla cidadania e pretende futuramente ser convocado para a Seleção alemã - portanto, a convocação para a canarinho pode ser, nesse contexto, um desvio de foco, uma declaração de compromisso dúbia.

Retiram a salada de alface triste com cebola e vêm o prato principal, um bife mergulhado em molho de tomate equeijo duvidoso. A comida cai mal, sinto náuseas. O Brasil da TV também vai mal.

Corta para o apresentador especulando sobre a alta do dólar, que dispara rumo ao impossível. Alguém murmura que vamos chegar aos cinco reais, na mesa ao lado. Alguma coisa sobre investidores fugirem do país, buscarem o ninho de águia auspicioso do Tesouro dos Estados Unidos da América.

Olho à volta e estão todos vidrados na TV. Choveu durante a manhã, e dezenas de semáforos não funcionam. Um motorista de ônibus atropela um ciclista, um ciclista atropela um pedestre e um pedestre atropela uma criança. Comento baixinho à mesa, sem pensar: o Brasil é assim, ou você atropela ou é atropelado. Meus colegas dão de ombros diante da obviedade, absortos nas notícias do dia, que consomem com a alegria desenganada com que consomem o prato do dia: feijoada.

Recuso a feijoada, mas o queijo me faz mal. Deve estar vencido há uns dias. A toda hora vemos notícias de restaurantes que são autuados por estocarem comida vencida, inclusive restaurantes finos em que jamais pisarei. O Juca's faria diferente? Ou você engana ou é enganado.

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Acaba o noticiário geral, começa o programa de esportes. A mulher na TV anuncia novamente o caso Rafinha, em tom grave. Parece indignada: como alguém poderia não querer jogar na Seleção? Jogar na Seleção sempre foi o sonho de todos os meninos, em geral, e de todos os atletas, em particular. O que significa desdenhar desse sonho? Acusam-no de querer jogar na Alemanha. Acusam-no, querendo intimamente poder fazer o mesmo.

Não é o Brasil que desconvoca Rafinha, penso, mas Rafinha que desconvoca o Brasil. 

Digo que estou passando mal e levanto. Sem mais perguntas, alguém ri e me pede para deixar o dinheiro da conta. Atiro vinte reais à mesa, como se fossem os anos 90. Titubeio, envergonhado, e lanço mais quarenta.

Podem ter sido as caipirinhas, de repente. Sempre tive estômago meio fraco. «

 

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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